O show tem que continuar; leia o editorial

“O dinheiro tira um homem da miséria / Mas não pode arrancar de dentro dele a favela.”

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Essas linhas da música Negro Drama, dos Racionais MCs, atravessam gerações porque falam daquilo que não se apaga. A favela não é uma geografia — é uma marca, uma forma de ver o mundo, um código de resistência. Mas também é dor. É o grito que ecoa quando a bala corta o silêncio da noite, é o medo que a gente aprende a administrar desde cedo. É amor, mas é também cansaço.

Muitos de nós, crias, crescemos acreditando que “sair da favela” significava “abandonar o lugar de onde viemos”. Que subir um degrau era virar as costas. Mas a verdade é mais complexa. A favela mora em nós — e isso ninguém arranca. Como disse MC WJ, “a favela nunca foi uma escolha, nunca foi uma opção.” Ela nasceu da urgência, da falta de reparação, do improviso transformado em casa, em laje, em vida. Romantizar essa realidade é ignorar a luta que ela carrega.

Ser cria é carregar a memória do barraco de um cômodo, do esgoto a céu aberto, e ainda assim sonhar com um apartamento arejado, com uma vida sem medo. É querer o melhor pra si e pros seus — não como fuga, mas como continuidade de um sonho interrompido. É entender que o amor pela favela não precisa vir acompanhado da condenação de viver o resto da vida em precariedade. Amar o lugar não é se resignar a ele.

A favela sempre foi potência, mas também sempre foi limite imposto. E quando um de nós atravessa esse limite — quando entra em campo pra vencer — não é uma traição, é vitória coletiva. Porque cada cria que conquista um novo espaço abre caminho pra outras. Leva o nome da favela na alma, mesmo quando o corpo já não cabe mais no mesmo espaço.

O que precisamos romper é o discurso que nos prende à miséria, como se o sofrimento fosse sinônimo de identidade. Não é. Nosso orgulho não vem do que nos faltou, mas do que conseguimos construir mesmo quando o mundo nos negava tudo.

Por isso, este editorial é também um gesto de passagem.

Depois de 13 anos sem parar, nosso diretor institucional e de jornalismo, Michel Silva, se prepara para passar o bastão. A nova geração de comunicadores e comunicadoras da Rocinha já está pronta — com novas linguagens, novas tecnologias e a mesma raiz. Eles são o futuro que a gente sonhou quando ainda imprimia jornal com tinta e suor, batendo de porta em porta.

As produções das próximas edições impressas seguem firmes, com a mesma garra da primeira. Nesta edição, o tema central é justiça tributária — um palavrão, né? Mas que fala diretamente sobre o peso que o povo carrega e o quanto ainda precisamos equilibrar essa conta. 

Este não é um adeus — é um até logo. E me chamem para tomar um café, hein? A luta continua — e, como canta o Fundo de Quintal, o show tem que continuar.

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