Cozinha Solidária Ajeum Tia Irani é inaugurada na Rocinha
Das janelas próximas à Rua 3, já se avistava a fumaça branca saindo da bica do canteiro, e para sentir o aroma inconfundível do fogão a lenha. Sensações que traziam para dentro das moradias a nostálgica lembrança de tempos passados, quando o fogão a gás ainda era novidade no morro. Os batuques das crianças no famoso quintal, também podiam ser ouvidos de longe naquele domingo ensolarado de setembro. Quase tudo estava pronto para reinauguração de uma tradição secular na Rocinha: a Cozinha Solidária Ajeum Tia Irani.
No fogão a lenha, improvisado com tijolos, um panelão de feijoada era mexido cuidadosamente, enquanto outras pessoas já arrumavam a mesa, com os acompanhamentos do prato que seria servido. Por volta 14h, cada morador pegou uma cumbuca e se alinhou para servir a refeição, celebrando não só a comida, mas também o espírito de solidariedade que unia todos ali.
Ajeum é uma palavra do idioma Iorubá, cujo significado é “se alimentar”, e que no candomblé, ganhou o significado celebrativo de: “comer junto!”.
“Mãe, eu não gosto de feijoada”, reclamou uma menina de aproximadamente oito anos. Em resposta, a mãe, disparou: “Você nunca comeu! Como sabe que não gosta?”. A mãe da pequena então se virou para o homem que servia a comida e autorizou: “Pode colocar, que ela vai comer sim!”.
O evento aberto a todos, aconteceu no último domingo, 8 de setembro, na Rua 3, e foi o lançamento da Cozinha Solidária Ajeum Tia Irani, projeto que é fruto de um edital da Fundação Oswaldo Cruz, mas que só tem financiamento garantido para funcionar até fevereiro de 2025.
O bloqueio de um repasse de 25 milhões da Alerj pelo governador Cláudio Castro, prejudica iniciativas como a cozinha solidária da Rocinha, que nasceu podendo já estar condenada a desaparecer. O bloqueio afeta diretamente os projetos que fazem parte do Plano Integrado de Saúde nas Favelas.
Mas no dia do lançamento (ou reinauguração) da cozinha solidária, tecnologia social de combate à fome que já existiu no morro na década de 1990, não houve espaço para desesperança. Uma vez que além de aplacar a fome, a feijoada à lenha resgatou a memória e a tradição de sobrevivência coletiva na favela ensinada por Tia Irani.
Emocionados, os filhos de Dona Irani, Nando e Augusto, observaram com olhos lacrimejados a faixa pendurada em homenagem à mãe, falecida em 2019, aos 85 anos. Reunidos no evento, os irmãos também se emocionaram com a entrega da placa com a frase: “Quintal Antônio Maciel (Sr. Carazinho)”. Uma homenagem ao pai, companheiro de Tia Irani que, com a esposa, combateu a fome na Rocinha. O casal oferecia o famoso sopão aos sábados, nos anos 1990 e início dos anos 2000, cuidando dos vizinhos sem comida no prato.
“Você consegue imaginar como é dormir e acordar com fome?”, pergunta Jilbert Fonseca, de 51 anos, cozinheiro do Centro Social de Educação e Cultura da Rocinha (CSECR). E destaca: “A gente ter um lugar para poder comer uma comida boa, gostosa e feita com amor. Isso não tem preço”.
A Cozinha Solidária é apenas uma das várias atividades realizadas no CSECR. O projeto social foi iniciado por Tio Nando, que, com o tempo, conquistou o apoio de outros colaboradores, como Vinicius Freitas e Ulisses Silva. Juntos, eles contribuíram para formalizar a iniciativa, buscando ampliar os recursos e financiamentos. Foi esses dois colaboradores, em parceria com a família, que organizaram uma surpresa especial para os irmãos, filhos de Antônio e Irani.
Sopão + afeto
Localizada na Rua 3, área central da Rocinha, a cozinha solidária Ajeum Tia Irani foi resgatada pelo Centro Social através do edital do Plano Integrado de Saúde nas Favelas, da Fundação Oswaldo Cruz. Para isso, recebeu apoio do “Periferia Viva”, projeto social que tem um curso de Agentes Populares por Direitos.
“A gente sempre teve a intenção de reativar o trabalho social que o seu Antônio Carazinho Maciel e a Tia Irani Ferreira da Silva faziam, que era essa cozinha solidária. [Eles] promoviam a alimentação para pessoas em situação de vulnerabilidade aqui na Rocinha”, lembra Ulisses Silva, de 42 anos, um dos representantes do projeto.
Mais conhecido no morro como LP, ele conta que a intenção da cozinha não é apenas uma ação afetiva do sopão e almoços coletivos de Tia Irani, mas fazer a cozinha funcionar três vezes na semana com a distribuição de 200 quentinhas para a população vulnerável na Rocinha.
“Os agentes de saúde locais serão responsáveis por nos indicar o público-alvo a ser atendido, pois possuem um bom conhecimento das pessoas que realmente estão passando necessidade”, explica o Ulisses Silva.
A estratégia e parceria com os agentes de saúde leva em conta a “particularidade” das pessoas em vulnerabilidade social. “Elas se retraem em casa e não têm forças para buscar doações. Isso acontece porque, no sistema brasileiro, o indivíduo médio foi ensinado a acreditar de forma equivocada que, se não consegue prover seu próprio sustento, a culpa é dele”, lamenta o coordenador da cozinha.
A Cozinha Solidária Ajeum Tia Irani foi inserida como parte de um projeto do Centro Social de Educação e Cultura da Rocinha, que já existe há anos na favela. A instituição participa com alimentação e tem atividades para as crianças envolvidas na iniciativa. Além de aulas de reforço escolar, jiu-jitsu e informática, os beneficiários também recebem cestas básicas para complementar na alimentação em casa.