
Entre sacolas e sonhos, a Rocinha mantém a esperança do Natal
Moradores trocam as luzes pelas orações e valorizam a união familiar, com presépios e ceias que celebram o 'verdadeiro sentido do Natal'
Por Isabelle Trindade
O fim do ano chega à Rocinha como um vento manso que atravessa janelas abertas e pousa nas mesas simples, misturando cheiro de café, luz amarelada e um desejo silencioso de renovar esperanças. É como se as casas respirassem diferente, acompanhando o compasso lento dos dias que se despedem.
Na casa de Maria do Socorro Souza, de 44 anos, que mora há 18 anos na Rua 3, a época do Natal, reacende o clima de antigas tradições. “Antes eu nem ligava, hoje acho bonito. Esse ano ainda vou comprar a decoração”, disse. Católica, ela encontra na ceia de natal com a família seu momento de aconchego.

Na Dionéia, Evani Nascimento, de 61 anos, recebe essa época do ano como uma oportunidade de fazer faxina e sacolas de doações. “Todo ano separo coisas. Já levei três sacolas pra igreja e ainda vou separar mais”, conta.
Para ela, o Natal continua sendo uma união — mesmo que hoje a casa encha menos. “Ano passado senti… no começo, a casa fica cheia, depois todo mundo vai embora.”, lamenta.
Jorgina Santana, da Rua 2, mantém a tradição da oração entre a Missa do Galo e a ceia, um dos momentos que reforçam a mensagem mais importante: “trazer para dentro de casa o verdadeiro sentido do Natal”. Por isso, o presépio é o principal na decoração.
Para católicos, a celebração da missa no momento da ceia, que ocorre à meia-noite da véspera de Natal, ou seja, na passagem de 24 para 25 de dezembro, é uma tradição importante para comemorar o nascimento de Jesus.
Entre as igrejas evangélicas, batistas, presbiterianas, metodistas, entre outras, o Natal também é um momento de grande celebração, com cultos especiais refletindo o nascimento de Jesus como a chegada da salvação para a humanidade.
Já na casa de Eledina, são as luzes da árvore de Natal montada com os filhos que fazem a diferença. “Esse ano mudei de árvore, é menor, mas tem muito amor.” Para ela, o essencial é a casa cheia — filhos, genros e dez netos espalhados pelos cômodos.

Comércio fraco
Do lado de fora, as ruas da Rocinha e da cidade já estão agitadas, mas o comércio sente o peso do ano. Segundo o Instituto Fecomércio de Pesquisas e Análises (IFec/Fecomércio-RJ), o varejo formal registrou retração de 2,1% no volume total de vendas realizadas por estabelecimentos comerciais legalizados. Isso porque parte do consumo migrou para as vendas online. Nas lojas da Rocinha, a percepção dos vendedores é parecida.
Na Via Ápia, Sandra Silva, 45 anos, da loja “Alê Tem”, relata movimento fraco e torce pela chegada do pagamento do 13º salário, benefício garantido por lei ao trabalhar empregado no regime CLT, para aquecer as vendas.
Na loja “Mineiros Biju”, a expectativa dos vendedores também é de que o pagamento do benefício melhore as vendas. Segundo as vendedoras da loja, as bijuterias, bolsas e maquiagens continuam liderando as escolhas das clientes para presentes.
A queda nas vendas também vem sendo sentida na loja de utilidades para casa localizada no Largo dos Boiadeiros. Segundo os vendedores da “Tem Tudo Utilidades”, há menos fluxo de gente nas ruas e menos sacolas nas mãos.
Solidariedade
Mas, enquanto o consumo desacelera, a solidariedade ganha força — e encontra seu coração no projeto de Valdirene Barros, a Val, 56 anos, criadora do Bazar Solidário dos Solidários. O espaço localizado na Rua Nova nasceu na pandemia, quando ela própria precisou de suporte. “Fui ajudada e senti que precisava ajudar também”, afirma.
Hoje, Val troca roupas por alimentos, vende peças a preços simbólicos e mantém um apadrinhamento que já ultrapassou 46 crianças. Ela faz questão de pedir roupas novas“pra que a criança passe o Natal com uma roupinha bonita” e registrar cada entrega. No dia da festa, ela distribui os brinquedos e lanches vestida de Mamãe Noel, transformando a sede do bazar em um pedacinho de alegria em volta da árvore montada.
“No meu tempo, eu não sabia o que era ceia ou presente de Natal”, conta emocionada.
Este ano, o desafio é maior: faltam cestas básicas. Val reforça o pedido para quem puder ajudar o bazar com alimentos, roupas novas, brinquedos ou até tempo para dar suporte. “Às vezes gastamos tanto com coisas supérfluas… Não custa juntar dois, três amigos e montar uma cesta”, ressalta. O trabalho realizado por ela sustenta um Natal mais digno para dezenas de famílias.
A Ceia Solidária do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) também aquece a comunidade. Antonio Felipe, colaborador, conta que a ceia reúne cerca de 200 pessoas em frente ao Espaço Comunal Elízia Pirozi, que fica na Casa da Paz, na Rocinha. “Além do combate à fome, é um momento de integração. Quem quiser pode doar ou cear com a gente”, afirma.
Mais do que uma data no calendário, o fim do ano é um convite à renovação. O que ilumina a Rocinha não são só as luzes nas janelas, mas os gestos: casas arrumadas, comércio resistente e mãos que se estendem. É assim que a favela se reinventa a cada fim de ano, partilhando o desejo profundo de que ninguém fique sozinho.





