Moradores da Rocinha criam tilápias em caixas d’água como alternativa contra a fome

Projeto também investem no cultivo de hortas com materiais recicláveis para reduzir o acúmulo de lixo na favela

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Ao chegar ao Terreirão da Rua 1, no alto da Rocinha, próximo à Pedra do Morro Dois Irmãos, é possível observar um movimento de preservação ambiental. Trata-se do projeto Horta na Favela, uma iniciativa criada por Flávio Gomes, morador do morro há 50 anos. O projeto une cultivo de hortas urbanas em pequenos espaços, limpeza da mata e criação de peixes em caixas d’água. 

Em novembro de 2025, o Brasil sediará a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), em Belém, no Pará. O evento global reúne países para discutir e negociar medidas para combater o aquecimento global e as mudanças climáticas. Mas, o exemplo de Flávio revela como já é possível viver numa favela sustentável e combater a fome com conhecimento e pouco investimento. 

“Se eu tivesse o conhecimento que tenho hoje, talvez minha família não tivesse saído no jornal como a mais pobre da Rocinha, em 1979. Toda aquela pobreza que vivemos era, em parte, por falta de conhecimento sobre os alimentos”, relembra Flávio, emocionado ao narrar a infância em vulnerabilidade social. 

Na sede do projeto, um espaço alugado, é comum encontrar Flávio com as mãos na terra, de chapéu de palha, preparando o solo para o cultivo de plantas alimentícias. Com criatividade, ele e o irmão, transformam o que seria lixo em estrutura para a produção de alimentos: utilizam geladeiras, baldes, caixas d’água, garrafas e outros materiais recicláveis descartados na mata para montar canteiros, tanques de criação de tilápias e composteiras, que produzem terra rica em nutrientes.

Na sede do projeto Horta na Favela, Flávio Gomes cultiva plantas alimentícias e sonha em ver a Rocinha resgatar sua identidade agrícola como forma de enfrentar a insegurança alimentar.
Fotos: Karen Fontoura e Lucas Euller

“Um dos meus sonhos é ver a Rocinha resgatar a identidade agrícola e ser como já foi um dia: uma grande roça, onde os próprios moradores cultivavam seus alimentos e vendiam nas feiras e mercados locais”, explica Flávio. 

Ele acredita que esse conhecimento pode também se transformar em fonte de renda para quem vive na favela. Segundo a pesquisa de 2023 do Instituto Pereira Passos sobre os Territórios Sociais nos 10 Grandes Complexos, cerca de 5.328 famílias da Rocinha vivem em situação de insegurança alimentar. O estudo entrevistou 24 mil moradores e identificou que 3.861 famílias vivem em extrema pobreza.

Consciente dessa realidade, Flávio decidiu estudar agroecologia, piscicultura e meliponicultura, para desenvolver um modelo sustentável de produção de alimentos na favela. Aprendeu que a tilápia, uma espécie de peixe aquático muito popular devido à sua rápida taxa de crescimento e fácil adaptação a diferentes ambientes aquáticos, podem se desenvolver em caixas de água nas lajes O peixe é uma ótima fonte de proteína e nutrientes, e é amplamente consumida em várias culturas culinárias.

Flávio ainda busca fortalecer a consciência coletiva sobre o descarte correto de resíduos sólidos, incentivar o reaproveitamento e despertar nos moradores o desejo de transformar os próprios espaços. Mas, o criador do projeto reconhece que, a rotina exaustiva da maioria dos moradores, muitas vezes presos à lógica do trabalho 6×1, dificulta o contato com a terra. 

Por isso, ele promove oficinas para compartilhar o que aprendeu em cursos com  práticas para o dia a dia. “Acabei de plantar um caju aqui e quero plantar meu pé de jabuticaba. As raízes ajudam a prender o solo e evitar deslizamentos”, explica Flávio, ensinando que a sustentabilidade passa pelo cuidado com o território.

Sustentabilidade e dinheiro no bolso

A área onde o projeto atua está localizada no maciço da Floresta da Tijuca. É uma das poucas regiões de mata preservadas no entorno da Rocinha. Em meio à ausência de saneamento básico, descarte irregular de lixo e dificuldades de acesso a alimentos saudáveis, a iniciativa traz uma resposta concreta e inspiradora.

Hoje, três famílias do morro já mantêm tanques próprios de tilápias ativos com apoio do projeto. O processo, segundo Flávio, é simples, mas exige dedicação. “Muitos outros moradores podem adaptar o modelo para suas casas”. 

Na Semana Santa, em abril, um morador vendeu R$630 em tilápias para amigos, mostrando o potencial da iniciativa para gerar renda na Rocinha.

“E o Alexandre ainda retirou peixes para a família dele, a mãe e irmãos”, conta Flavio. Ele explica que com um valor, em torno de mil reais, o morador consegue os materiais para fazer o tanque para criar as tilápias. E sabe o que é melhor? Caso utilize utensílios descartados na mata, o custo é mais barato. “O conhecimento e a vontade a gente já tem! Uns quatro moradores querem implementar os tanques de tilápias, mas falta o investimento”. 

Moradores da Rocinha recolhem os peixes criados em caixas d’água nas lajes de casa, garantindo alimento fresco para o consumo próprio e fortalecendo a autonomia do território.

De acordo com dados da Lei de Acesso à Informação, 8.293 famílias da Rocinha recebiam o Bolsa Família em maio de 2024. O programa é essencial para o combate da fome na favela. No entanto, nem todos que precisam, conseguem acessar o benefício, o que reforça a importância de iniciativas autônomas e comunitárias como a de Flávio.

Lucilene Ribeiro, 34 anos, moradora da região, quer implementar o sistema de hortas em casa para cultivar o próprio alimento: “As crianças já estão falando que vão ajudar ele e ver como faz a horta em casa.  Até eu estou vendo se arrumo uns vasos para colocar aqui em cima [no muro] para produzir meu alimento”.

Mesmo com todo o engajamento da comunidade, o projeto ainda não conta com nenhum tipo de financiamento. Inclusive, já precisou mudar de sede, pois a casa (alugada) foi vendida.  

Atualmente, a nova sede está em reforma para receber turmas de escolas da região, além de lideranças interessadas em multiplicar o conhecimento. “Se a gente tivesse um incentivo financeiro, seria um gás a mais. Poderíamos remunerar os moradores que já estão com a gente, e isso permitiria que todos se dedicassem mais. Só de não ter que se preocupar com as contas do mês, já seria uma grande oportunidade”, ressalta Flávio.

Você sabia?

Agroecologia: É o estudo de como plantar e cuidar da terra de um jeito natural, respeitando o meio ambiente. Na prática, é fazer hortas usando adubo orgânico, reaproveitar restos de comida e plantar sem veneno, como se fazia antigamente.

Piscicultura: É a criação de peixes. No caso do Flávio, ele cria tilápias em caixas d’água. Isso ajuda a produzir alimento fresco e saudável dentro da própria favela.

 Meliponicultura: É a criação de abelhas sem ferrão. Essas abelhas ajudam a polinizar as plantas (ou seja, a fazer as plantas darem frutos) e ainda produzem mel, que pode ser usado na alimentação ou até vendido.

Compostagem: É transformar restos de comida, como cascas de frutas, legumes e verduras, em adubo natural. Em vez de jogar no lixo, esses alimentos viram uma “terra boa” cheia de nutrientes para plantar. Além de evitar o acúmulo de lixo, a compostagem ajuda a cuidar das plantas e do meio ambiente.

Plantas Alimentícias Não Colonizadas (PANCs Ancestrais):  As PANCs ancestrais não são tendências, nem alternativas. Elas são alimentos que sempre existiram nos territórios negros, indígenas e periféricos, ensinou Nego Bispo. São plantas que vivem nos nossos quintais e passam despercebidas, mas sempre estiveram nos pratos das avós, nas feiras populares e nas mãos de quem sabe que elas oferecem uma variedade de sabores, texturas e benefícios nutricionais. Podem ser a chave para enriquecer a sua dieta e garantir a segurança alimentar  da sua família e um futuro enraizado nos saberes ancestrais. Talvez você tenha PANCs aí … E nem sabe! (Com informações de @brunacriola e Invivo – Museu da Vida Fiocruz).

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