A Rocinha Resiste: ações que ultrapassam o limite da favela
“O que teremos para a próxima semana?” é a pergunta que norteia boa parte dos jovens do grupo A Rocinha Resiste, ao fim de mais uma noite de doação, entrega e compartilhamento de risos, choros e agradecimentos entre uma golada de suco ou mordida de um lanche. Muitos deles são moradores da própria Rocinha, projetando já naquele momento como irão angariar mais uma leva de roupas, sapatos e alimentos. Pesam em suas cabeças o sentimento de que não poderão chegar de mãos abanando, nesse que já passa a ser um evento cravado no calendário e cheio de expectativa.
Os encontros têm como ponto de concentração a estação de metrô São Conrado/Rocinha, na região mais baixa da favela. Dali, por volta das 21h da noite, saem em direção ao Centro do Rio com as doações. É um trabalho que se dá em poucas horas e passa no tempo de um estalar de dedos. A iniciativa teve início quando o grupo que reúne moradores e também não moradores ligados à comunidade, encerrou o plano de doação interna, viabilizando recursos para prevenção e combate do novo coronavírus aos moradores, num contraponto à falta de ações públicas efetivas nesse período.
Everton dos Reis, um dos mobilizadores do grupo, explica o remanejamento das doações e a mudança de foco para pessoas em situação de rua. ‘’Ao final do plano de ajudar as famílias da Rocinha com as cestas básicas, entendemos que não só aqui dentro tinham pessoas em situação de vulnerabilidade social. Sabendo que essas pessoas vivem nessas condições, decidimos nos movimentar para que o alimento chegasse às ruas também’’.
No fim de março, quando a Organização Mundial da Saúde decretou estado de pandemia global, o prefeito Marcelo Crivella tomou medidas para atender às camadas mais vulneráveis. Como parte dos esforços, a Prefeitura disponibilizou o Sambódromo para abrigar pessoas em situação de rua, tendo 400 vagas no total. A prioridade era, à época, acolher idosos, grávidas e mulheres acompanhadas com crianças. Segundo a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, foram realizados 49 mil atendimentos entre 10/03/2020 e 18/08/2020, nos sete abrigos disponíveis na rede.
Quanto ao possível crescimento do número de pessoas em situação de rua nos últimos cinco meses, a SMASDH informa que não é possível precisar a informação, já que o censo que traria o quantitativo desta população (feito em parceria com o Instituto Pereira Passos) teve de ser adiado em função da pandemia de coronavírus.
Para Everton, a escassez de políticas públicas aliada ao desinteresse da sociedade civil é fator preponderante na atuação que o grupo desenvolve semanalmente. ‘’Sabemos que existe ausência não só do Estado, mas da sociedade como um todo quando se fala em pessoas nessa situação’’, diz. ‘’O número de doações acaba sendo muito menor comparado às favelas, até porque, em alguns casos, as doações aqui (cita a Rocinha como exemplo) acabam sendo midiáticas e não humanas’’.
O sentimento de quem doa
Raphaella Morais, moradora da Rocinha, começou a ser voluntária no grupo ARR em abril, quando as mobilizações ainda para a favela começaram, e seguiu agora com nova pegada nas ações.
Sobre o que pensa do feito, acredita que não seria necessário se houvesse empenho dos agentes públicos. ‘’Não é uma coisa que nós deveríamos fazer, já que é papel do Estado manter o bem-estar de todos os cidadãos’’, conta. ‘’Vai ser gratificante quando nós chegarmos nas ruas e não encontrarmos pessoas com dificuldades’’.
Em meio a tantas histórias, Raphaella resgata uma lembrança recente que a marcou nesse período de compartilhamento com quem está nas ruas. ‘’Um senhor disse que tinha conseguido o auxílio emergencial do governo e tinha uma entrevista marcada no dia seguinte. Fomos lá e procuramos uma roupa em bom estado para que pudesse ir bem’’.
Quem compartilha sentimentos parecidos aos de Raphaella é Kevin Maycon, também morador e voluntário. Para ele, o que fica das ações é o estabelecimento de uma teia da solidariedade. “Encontrei um local e pessoas que posso dar as mãos e seguir, tentando reduzir os impactos que acontecem quando o Estado não vem”.
Sobre a continuidade do trabalho e a possibilidade de um “fim”, Kevin acredita que o empenho pessoal seguirá. “A pandemia criou redes, serviu para abrir meus olhos e continuar a fazer pelo outro. Se algum dia as ações acabarem, juntarei os braços que encontrei e vamos por conta própria. É uma luta que não pode parar”.
*Edu Carvalho, correspondente local sob supervisão de Michel Silva no programa de microbolsas do Fala Roça, em parceria com Repórteres Sem Fronteiras – Brasil