Insegurança energética: por que falta tanta luz na Rocinha?

Quedas de energias causam prejuízos incalculáveis e até risco de morte
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Na Estrada da Gávea ou nos becos, é comum ver emaranhados de fios de um poste a outro. Mas, as gambiarras não sustentam a demanda energética: toda hora falta luz na Rocinha. Por quê? 

Há quem diga que as ligações clandestinas e o crescimento da população da favela justificam as consecutivas quedas de luz. Uma vez que a história de instalação de energia elétrica na Rocinha é marcada por irregularidades e reivindicações. 

Nos anos 60, as Comissões de Luz mediavam o fornecimento de energia elétrica nas favelas. Moradores pagavam pela manutenção dos postes e transformadores diretamente à Comissão, que era responsável por distribuir luz no território e repassar o dinheiro para a Light.

Na Rocinha, esse processo é marcado pela figura de Benedito Batista, presidente da Comissão de Luz, por cerca de 20 anos. Segundo jornais da época, além de cobrar caro pelo fornecimento de energia, ele não repassava o pagamento dos moradores à Light. Com isso, os cortes de luz eram constantes e muitas dívidas foram geradas. 

Nesse cenário, em reuniões de movimentos sociais, surgia a demanda de melhorias nos serviços de distribuição de luz em diferentes comunidades. 

Em 1982, após anos de articulação com a empresa, acontece a instalação de energia elétrica por parte da Light através do Programa de Eletrificação de Interesse Social e com a inauguração Subestação São Conrado, uma das mais modernas da empresa, que passava a distribuir energia elétrica para São Conrado, Rocinha e parte da Barra da Tijuca.

Liderança histórica da Rocinha, José Martins, foi um dos articuladores desse processo junto a Pastoral de Favelas. À época, a Light era uma companhia pública. Com o fim da Comissão de Luz, os preços baixaram e a energia foi estabilizada. 

“Com a Comissão, o serviço era muito precário. As pessoas se sentiam exploradas com valores caros. Quando trabalhadoras domésticas conversavam com as patroas, viam que a luz do asfalto era mais barata que a da favela. Com a entrada direta da Light, tivemos um período muito bom de [fornecimento de] energia na comunidade”, relata Martins.

José Martins luta por melhorias na Rocinha desde a década de 70 e esteve a frente de moblizações como o fornecimento de energia elétrica na Rocinha. Foto: Bruno Itan

Em 1996, com a privatização da empresa, o serviço começou a apresentar falhas que se refletem até hoje. “No tempo que ela [Light] era pública, ela tinha muito mais eficiência. A solução, no meu ponto de vista, seria a encampação pelo poder público da empresa Light”, afirma Martins. 

“Não tem um dia que não falte luz na Rocinha. Isso é um desrespeito com a comunidade”. 

José Martins

Encampação é quando o poder público reassume a gestão de serviços ou atividades que estavam sob responsabilidade de empresas privadas, visando melhorar sua qualidade e eficiência.

As quedas de energia ainda causam prejuízos enormes e são um risco à vida. Em 17 de julho, uma família teve a casa completamente destruída por um incêndio causado por velas acesas para iluminar o imóvel em mais um dia de falta de luz, na região do Portão Vermelho. Ninguém ficou ferido, mas a casa alugada ficou completamente destruída. 

“Quando ele voltou para o quarto, já estava tudo tomado pelo fogo. Os vizinhos gritaram e eu entrei para tirar ela da casa”, relata Silvio Luiz, de 66 anos, sogro de Antonia.

Verão sem luz

No verão de 2023, cerca de 15 localidades da Rocinha ficaram 17 dias sem luz. Segundo técnicos da Light, a razão para o apagão foi o superaquecimento de cabos elétricos por conta do calor. Além da rotina afetada, moradores tiveram prejuízos com alimentos estragados e eletrodomésticos queimados. 

Com Kevin Santos, morador da Macega, não foi diferente. Criado na Rocinha, ele enfrenta as consequências da falta de luz desde a infância e já chegou a ficar mais de uma semana sem energia. Ele perdeu o microondas e a geladeira na época mais quente do ano. “Foi um período de grandes prejuízos”, afirma Kevin. 

E completa: “Era praticamente impossível conseguir dormir e descansar no calor. É você ir pro trabalho e faculdade e não querer voltar porque a luz ainda não tinha voltado. Não existia descanso”, desabafa o morador.

50 anos depois, o jovem Kevin Santos sofre com os reflexos da insegurança energética na Rocinha. Foto: Bruno Itan

Com as denúncias do apagão, em março de 2024, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e a Light firmaram um Termo de Compromisso, com um investimento de R$1 milhão para melhorias do serviço de distribuição de energia elétrica na Rocinha. 

O Termo ainda será homologado pela Justiça. O investimento milionário tem como objetivo disponibilizar canais de atendimento 24 horas, em casos de quedas de luz,e compensar o prejuízo dos moradores.

“O acordo visa assegurar os direitos dos moradores à energia elétrica contínua e de qualidade, promovendo maior estabilidade e confiabilidade no serviço”, afirma Karine Terra, subcoordenadora do Núcleo de Defesa do Consumidor.

Pedidos ignorados

O desafio em entender a energia elétrica como um direito está em ter o lucro como prioridade. Segundo a Light, a Rocinha é o segundo local com maior furto de energia na cidade do Rio de Janeiro. A empresa atrela a falta de luz aos gatos e gambiarras. 

Conforme a Cláusula Quarta do acordo, a Light se compromete a compensar financeiramente os moradores mediante crédito na fatura. No entanto, as contas de luz não chegam em diversas localidades da Rocinha, o que impede a comprovação de residência dos moradores e a busca por direitos. 

“Quando temos falta de luz, procuramos um vizinho que mora mais embaixo e tem uma conta, pois assim podemos cobrar da Light. No entanto, nós que moramos no alto, já tentamos diversas vezes conseguir uma conta de luz, até para ter um comprovante de residência. Só que a Light argumentava que o local de moradia (Macega) não estava no mapa da Rocinha”, explica Kevin Santos.

Com objetivo de prestar assistência jurídica, a Ouvidoria da Defensoria Pública montou um formulário de denúncias para entender as dificuldades de acesso à luz e água na Rocinha. De acordo com a ouvidora Fabbi Silva, moradores lutam pela atualização da Rede de Abastecimento de Energia, que não é trocada há anos. Além disso, as casas possuem relógios instalados, porém, inoperantes. 

“Os moradores não se recusam a pagar a conta de luz. Eles querem que seja uma taxa que dialogue com a realidade econômica do território. Muitos não têm condição de pagar R$700 ou R$800 recebendo um salário mínimo. A taxa que querem cobrar se baseia no território, por ser da Zona Sul, sem entender a complexidade desses moradores, que são prestadores de serviço”, explica Fabbi Silva.

A Associação Pró-Melhoramentos dos Moradores da Rocinha afirma que trabalha junto com técnicos da Light para que eventuais quedas de luz sejam solucionadas de forma rápida. 

Procurada, a Light forneceu dados sobre ligações clandestinas na Rocinha, mas não retornou os questionamentos do jornal sobre o andamento do Termo de Compromisso em parceria com a Defensoria Pública.

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