Bando Cultural Favelados usa a arte como instrumento de libertação
Criado na Rocinha, o grupo de teatro Bando Cultural Favelados ganhou espaço no Rio de Janeiro. Antes limitado a favela, o projeto está presente em outros morros e no asfalto. Em uma de suas produções, o Bando levou o espetáculo “Corpos Periféricos” até a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a ALERJ. Além disso, a companhia expandiu sua área de atuação com oficinas em Santa Cruz, Rocha Miranda e Rio das Pedras. Existe, ainda, previsão de abertura de um projeto teatral no Jacaré.
Atualmente o Bando conta com cerca de 250 alunos, em cinco localidades diferentes. Apesar de terem base em um pequeno apartamento na Rocinha, o Bando atua em diversas regiões da cidade. Diante da alta procura, o lugar escolhido para as aulas semanais foi a Biblioteca Parque Estadual, no Centro, já que o acesso é mais fácil para alunos que vêm de áreas mais afastadas. O espaço para as oficinas surgiu por meio de uma parceria com a Secretaria de Cultura.
A iniciativa surgiu há mais de dez anos, como um evento para o dia das crianças. O ator e diretor Castelo Branco, fundador da iniciativa, pediu o salão de cabeleireiro na Rocinha emprestado para um amigo, que era cedido por duas horas de duas a três vezes na semana. O projeto começou como algo voltado para o público infantil, mas logo se expandiu.
O nome Bando Cultural de Favelados é uma brincadeira com as palavras, cultura que vem de cultivar e favela, da planta que crescia no morro da Providência. Além disso, a ideia era unir dois termos que são considerados distantes, reforçando que a cultura estaria, sim, presente na favela.
O espetáculo mais recente promovido pelo grupo é o “Corpos Periféricos”, uma apresentação voltada à favela, periferia e a importância do “eu sou”. O projeto começou há dois anos, a partir do “eu” e da vivência dos integrantes do grupo. A peça retrata experiências cotidianas do morro e aborda temas como religião, sexualidade, violência e preconceito.
De acordo com Castelo Branco, o teatro vem como um auxílio para que os alunos possam entrar em contato com sua história através da performance, ele chama atenção para a necessidade de realmente sentir para que se possa atuar. Diante do preconceito e da vilanização sofrida pela favela, o trabalho procura dar voz e empoderamento a quem antes se via reduzido à vítima do sistema.
A representação das minorias é um tema extremamente relevante para o grupo teatral, composto por diversidade. Rafaelle Angel, atriz e diretora do Bando, conta como a volta ao teatro a ajudou na exploração de sua identidade. Apesar de ter atuado com 16 anos, Rafaelle foi forçada pelo pai a deixar os palcos ao assumir sua homossexualidade.
“De três anos pra cá, eu fui fazer uma figuração no filme da Bibi [Ferreira], que é lá da Rocinha, e tudo começou de novo. Então voltou aquela chama, aquela vontade e hoje, já transicionada, já independente, foi maravilhoso [voltar]. A arte salva, a cultura é maravilhosa, eu tô muito feliz e muito grata”., conta Angel.
As aulas são voltadas para a liberação do corpo através do movimento, com a ideia de perceber a conexão entre todas as partes do indivíduo. O ensino é baseado em diferentes filosofias, aplicadas de forma prática. Pensadores como Nietzsche, Spinoza e Sartre são as principais influências para as oficinas e produções do grupo. O objetivo das aulas é desconstruir o ideal apolíneo, sustentado por cada um como fachada, e trazer a frente o arquétipo dionisíaco, voltado para o corpo livre e o meio artístico.
A dança é uma das principais técnicas utilizadas para que os alunos possam se soltar, sendo assim, a musicalidade se faz muito presente, tanto durante as oficinas, quanto nos espetáculos. De acordo com Castelo Branco, a inspiração veio de Nietzsche, que escreveu sobre a construção da tragédia através da música.
“Eu uso muita a questão da música para fazer essa liberação. Porque a gente leva uma semana muito corrida, muitas coisas aconteceram, mas a gente vem e dança e joga para fora e traz uma liberdade, traz uma vida. Dionísio vem, aí ele começa a fazer essa bagunça pra no final sair bonito, você sai transformado”., disse Castelo Branco.
Em mais de uma década, o projeto cresceu consideravelmente e ganhou reconhecimento, o que fez com que recebessem diversas indicações, como o prêmio de direitos humanos da UNESCO e o prêmio ibero-americano. Eles também receberam um convite para participar de um congresso na França, com apoio da ONU, por conta do trabalho que desenvolvem nas favelas e periferias do Rio de Janeiro.
Diante dessa expansão, alguns alunos do Bando receberam bolsas para participarem de cursos de artes cênicas nos Estados Unidos, entre Califórnia e Nova York. O auxílio financeiro cobre apenas o custo das aulas, por isso, para bancar a ida e estadia, o grupo começou uma vakinha na internet, voltada para os demais gastos da viagem.
O projeto chamou e continua a chamar atenção de importantes artistas, como Letícia Colin, Dira Paes, Julia Lemmertz, Jorge Coutinho e até o ator norte-americano que fez o filme “Máquina Mortífera”, Danny Glover. Ele veio ao Brasil, convidado pela ONU para visitar projetos sociais e acabou tendo um encontro com o Bando. Além do crescimento na área teatral, o Bando também se expandiu para o streaming e criou o Favela Flix.
O Favela Flix é um projeto que começou como uma brincadeira quando Castelo Branco resolveu trocar a logo da Netflix e colocar no Facebook. Pouco tempo depois o telefone dele tocou com um repórter da revista Época, perguntando do que consistia a ideia. Não tendo nada pronto, resolveu improvisar, sem roteiro e sem os equipamentos adequados. Castelo desenhou o esqueleto de uma série, pegou um cabo de vassoura, um fone de ouvido e fez um boom. A partir desse momento conseguiram desenvolver e criar uma série, curtas e uma novela.
A ajuda veio a partir de pessoas conectadas, que estavam interessadas em abraçar o projeto, seja com equipamentos, edição, ou montagem. Atualmente está sendo desenvolvido um documentário que vai contar a história do Bando Cultural Favelados com depoimentos de mulheres. O Favela Flix tem um canal no YouTube com cerca de 20 mil seguidores, mas perderam o acesso a ele. O objetivo é recuperar e conseguir seguir com a proposta.
*Reportagem produzida através da disciplina Jornalismo e Cidadania, ministrada pela professora Lilian Saback por meio de extensão universitária do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.