Charlie Gomes: “Seu filho é lindo, mas nasceu com defeito”

As anomalias craniofaciais enfrentam uma invisibilidade pública nas favelas, onde os dados sobre a população afetada são escassos.
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Ao acessar minhas memórias afetivas de infância na trajetória estudantil, lembro de questionamentos e perguntas como: “O que é isso?”, serem sempre recorrentes, além do bullying sofrido no ambiente escolar. Quando olhava o reflexo da minha imagem no espelho e notava o lábio leporino, por não ter uma explicação realmente plausível, a visão mexia com o meu psicológico.

Meu depoimento revela como as chamadas anomalias craniofaciais são uma condição desconhecida da população em geral, especialmente nas favelas, onde os dados referentes à malformação dos lábios são escassos, invisibilizando essa população.

As anomalias craniofaciais são defeitos congênitos que afetam a estrutura da cabeça e do rosto. Elas podem variar amplamente em gravidade e tipo, e muitas vezes requerem intervenção médica e cirúrgica para correção e melhoria da qualidade de vida do paciente.

A fissura labiopalatina, também conhecida como lábio leporino e fenda palatina, é um dos tipos mais comuns de anomalias craniofaciais. A malformação congênita ocorre em uma a cada 1.000 crianças nascidas no mundo, segundo o Centro Pró-Sorriso, da Universidade José do Rosário Vellano (UNIFENAS).

O bebê nasce com uma abertura no lábio superior e/ou no palato (céu da boca) devido à falha na fusão dos tecidos faciais durante o desenvolvimento fetal. Essa condição pode ser unilateral ou bilateral e pode afetar apenas o lábio, apenas o palato ou ambos. Pode impactar a alimentação, a fala, a audição e a dentição. O processo de reabilitação é longo e pode perdurar por até 30 anos na rede pública de saúde.

Apesar disso, o tratamento envolve uma abordagem multidisciplinar, com cirurgias corretivas, terapia fonoaudiológica, cuidados odontológicos e apoio psicológico, proporcionando às crianças a possibilidade de levar uma vida saudável e produtiva.

“O processo de acesso ao tratamento é enrolado e burocrático. Meu filho [Charlie Gomes] estava fazendo o tratamento na Ilha do Governador e adoeceu com pneumonia, precisando ficar internado no hospital da Lagoa, porque foi lá que consegui a cirurgia”, explica minha mãe Josefa de Souza, de 54 anos, moradora da Rocinha.

Com o surgimento do ultrassom, as famílias passaram a identificar o problema durante a gestação com mais facilidade. Mas há famílias que só descobrem no nascimento, como foi o meu caso. “Seu filho é lindo, mas nasceu com defeito”, disseram à minha mãe no parto.

As causas são multifatoriais, incluindo fatores genéticos e ambientais, como histórico familiar, exposição a substâncias tóxicas na gravidez e deficiências nutricionais. O tratamento envolve uma abordagem multidisciplinar, com cirurgias corretivas, terapia fonoaudiológica, cuidados odontológicos e apoio psicológico, proporcionando às crianças a possibilidade de levar uma vida saudável e produtiva.

A carência de informações e a preocupação com os filhos com malformação dos lábios também afetam a saúde mental das mães, devido aos cuidados com a criança. “Tu tinhas onze meses de nascido quando operou. Estava em aprendizagem de engatinhar e andar. Mas perdeu o treino, porque eu não deixava no chão por medo de bater a boca. Andava igual doida, nasci outra vez”, conta minha mãe.

Em outubro de 2023, o Senado aprovou o Projeto de Lei 3.526/20219, que obriga o Sistema Único de Saúde (SUS) a fazer cirurgia reconstrutiva de lábio leporino ou fenda palatina. “De acordo com a justificativa do projeto, são registrados 5,8 mil casos de bebês com fissuras labiopalatais todos os anos no Brasil e, na prática, menos da metade dos recém-nascidos são atendidos pelo SUS”, segundo informações da Agência Senado.

Segundo o Hospital Municipal Nossa Senhora do Loreto, localizado na Ilha do Governador, entre os anos de 2018 e 2022, foram realizadas 672 cirurgias de fissura labiopalatina. O hospital se destaca como o único centro de referência credenciado pelo Ministério da Saúde para o tratamento multidisciplinar das fissuras labiopalatinas no estado, prestando assistência durante toda a infância e a adolescência.

Na Rocinha, a Coordenadoria de Atenção Primária da AP 2.1 informou, via Lei de Acesso à Informação, que há quatro casos de pacientes com fissuras labiopalatinas. Eles são atendidos nas unidades de saúde CMS Dr. Albert Sabin e nas Clínicas da Família Rinaldo de Lamare e na Maria do Socorro Silva e Souza.

É preciso pensar cada vez mais em um tratamento público de impacto assertivo ao enfrentamento da desigualdade no acesso ao tratamento das anomalias craniofaciais.

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