Como os bondes e galeras redefiniram a cultura jovem na Rocinha nos anos 2000
Entenda como a juventude da Rocinha se organizou nos anos 2000 através de bondes e galeras, transformando bailes em símbolos de identidade e resistência
A rotina dos adolescentes dos bondes e galeras incluía um check-in na escola, uma parada obrigatória na Cobal do Leblon e de lá, os grupos partiam até o ponto de encontro da Rua 1 ou Curva do S. Esse movimento que, à primeira vista, parecia uma grande desordem, escondia a união entre jovens pertencentes às genuínas “famílias”. Sem nenhum laço de sangue, a cultura dos bondes e galeras criava vínculos e um cenário de socialização para a juventude da favela, em meio há uma era menos digital, com redes sociais como Orkut e Flogão, mas sem smartphones ou aplicativos.
Cada bonde ou galera tinha um nome ousado para representá-los simbolicamente, como Os Assanhados, As Tigrezas, a Galera do Estrapola (GDE), As Oncinhas, a Galera do Remedinho, As Selvagens, os Reis das Novinhas (RDN), As Quentes, Os Incríveis, etc. A cultura desses grupos foi um marco dos anos 2000 até meados de 2015, período em que a juventude frequentava festas, matinês e bailes da favela.
Além de lazer e entretenimento, os bondes e galeras cultivavam fortes vínculos de união e pertencimento entre seus integrantes. Todo mundo queria criar ou participar de uma “família”.
As reuniões pós-aula ou encontros em pizzarias no morro frequentemente se transformavam em eventos culturais, ou ocasiões sociais. Era como uma colônia de férias que durava o ano todo. Muitos bondes organizavam festas do pijama, idas ao cinema, passeios na praia, danças e até competições em matinês com outros grupos.
A cultura dos bondes promovia a lealdade nas amizades. Ser recrutado para integrar um grupo era um processo disputado: era necessário conhecer alguém de dentro para ser indicado, e a aprovação dos integrantes ou criadores do bonde era indispensável.
“Eu saí da Rocinha e, quando voltei, todo mundo já tinha um bonde. Eu não estava em nenhum, e era difícil entrar porque era fechado, tinha que ir às reuniões e ser amigo de alguém de dentro”, relata Patriny Costa, 29 anos, moradora da Rocinha e uma das fundadoras do bonde “As Absolutas”, criado em 2011.
As rivalidades entre bondes e galeras também faziam parte dessa cultura. Na adolescência, surgiam disputas que variavam de duelos de dança e campeonatos de futebol a competições para decidir quem organizava as melhores festas ou era mais popular no morro.
“Era importante para socializar, era nossa forma de se sentir pertencente. Geral dos bondes ia pra curva do S ou pra pracinha da Rua 4 depois da matinê. Era nossa forma de identificação, tanto no Orkut quanto no Flogão. O meu era Paty Absoluta”, relembra Patriny.
Os bondes e galeras também se reuniam para matar aula em locais próximos às escolas, como a Lagoa Rodrigo de Freitas, para socializar com outros grupos. Contudo, essas práticas contribuíram para a evasão escolar de alguns adolescentes, que mergulhavam profundamente nessa cultura em busca de uma forma de se destacarem e se sentirem integrados.
Cena artística dos bondes e das galeras
Com vídeos no YouTube, que surgiu em 2005, essa cultura fortaleceu o cenário artístico da Rocinha, com músicas e danças que proporcionam à juventude representar seus bondes e galeras, seja em funks ou através das montagens de fotos dos bondes. São momentos que, atualmente, trazem nostalgia e lembranças marcantes.
As fotomontagens, acompanhadas das músicas, eram populares e feitas para reforçar e espalhar o nome dos grupos no morro. “As Novinhas da Rocinha”, “Bloco dos Tigres”, “Os Bondes da Rocinha”, “Galera Remedinho é poder” e “Sou GDE”. Todos são exemplos de produções musicais que usavam funks famosos da época remixados, com uma voz autoral. Citava o nome e lema dos grupos que eram geralmente provocativos ou traziam cantos de afirmação.
“Estrapola, a novinha gosta muito, quando o Bonde Estrapola. Estrapola!”; “Esse é o lema dos RDN (Rei das Novinhas), dá beijo na boca, deixa apaixonado”; “Na onda, na onda do Remedinho, tem do rosa, do amarelo, do azul e do branquin”; “Com garra, com garra… vem pro setor que As Tigrezas, tão com garra louca pra fazer amor”. Sãotrechos famosos das rimas dos bondes e galeras que tocavam nas ruas, festas, matinês e bailes.
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Para MC Jean da Rocinha, de 28 anos, entrar para a Galera do Estrapola foi uma experiência extremamente positiva. “Tudo o que vivi ali me ajudou muito como adolescente”. Ele conta que se pudesse voltaria no tempo para viver tudo de novo. “A gente ocupava muito nosso tempo, fazia festas, fazia reuniões… A gente chegou até ter uma rádio online e foi muito top viver isso”, explica Jean.
Para ele, outros MCs e DJs, que fizeram parte da cena artística naquele período, puderam desenvolver a carreira por conta da cultura dos bondes, destacando que muitos atuam na cena musical até hoje. Ser artista não é tarefa fácil, mas as festas organizadas pelos bondes e as matinês no Varandão e no Emoções abriram espaço para que jovens talentos da Rocinha compartilhassem sua arte.
“Um dos momentos mais marcantes para mim era quando minha música tocava e a galera toda cantava com mão para o alto. Eu pensava: ‘Caraca, acertei muito nessa!’”, relembra MC Jean, emocionado.
“Eu produzia as músicas da galera, ajudava em eventos e são coisas que hoje eu faço na minha vida desde aquela época, que aflorou… A gente fazia por diversão e hoje virou minha profissão. Vivo de música, e foi uma parada que me deu muitos frutos”, explica.
Entretanto, Jean também reconhece os pontos negativos. As rivalidades entre as galeras nem sempre eram saudáveis. “Cada um carregava o nome da sua galera no peito, na risca”. A dinâmica orientada, por exemplo, era de que os integrantes da Galera do Estrapola não passarem na área da Galera Remedinho, que era na Paula Brito. “Hoje [isso] já mudou e ficou tudo bem, mas na época era coisa de maluco mesmo”, relembra rindo.
Passado que não volta
A Rádio Brisa, dirigida pelo cria Elias Lira, de 55 anos, organizava, nos anos 2000, um baile funk no antigo Varandão da Rocinha, na localidade da Fundação, onde hoje funciona uma igreja. Durante o baile, aconteciam os concursos de bondes e galeras, que concorriam a um prêmio. O ganhador passava a ser patrocinado pela rádio comunitária. “Vários grupos participavam. Um dos ganhadores se chamava Bonde do Semen. Depois, a rádio passou a patrocinar os bondes, onde [eles] ficavam muito conhecidos e ganharam audiência através da rádio”, relembra Elias.
Ele destaca que a rádio ajudava os grupos, ainda os divulgando na programação e no evento PagoFunk, realizado no Varandão da Rocinha. “A felicidade deles em fazerem parte dos concursos e curtir os eventos era sempre uma grande emoção. Como [a Rádio Brisa] não tem mais apresentador e locutor igual antigamente, acredito que essa cultura não seja como antes”.
Embora de fato essa cultura não esteja mais tão presente no morro, ela deixou marcas profundas na socialização e na memória afetiva da favela.
Pensar nessa época, que agora parece distante, traz reflexões para quem atualmente tem filhos e não vê mais a mesma interação social de 15 anos atrás acontecendo. Com o avanço das tecnologias, o convívio social da juventude mudou bastante, o que vem preocupando os antigos adolescentes, que agora são adultos e pais. “Nossa infância foi mais saudável que hoje em dia. Nosso mundo era mais divertido do que a internet”, acredita Roberta Ferreira, 29, moradora da Rua 1, integrante da Galera do Estrapola (GDE).
“Tenho uma filha de 11 anos e eu queria muito que ela tivesse vivido um pouquinho do que eu vivi na adolescência. Hoje em dia na favela, não temos mais matinês, e era uma coisa tão bacana”, opina Roberta. Ela afirma sentir falta desses espaços de arte, socialização e rivalidade saudável vivida na experiência da juventude dos bondes e galeras.