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Direito ao CEP: Moradores da Rocinha lutam pelo direito de ter um endereço próprio
Você sabia que milhares de moradores da Rocinha não têm um endereço oficial? Descubra como isso afeta suas vidas e o que estão fazendo para mudar.
Em vez de recorrer ao cartório ou usar contas de água, ou luz, moradores da Rocinha precisam ir à União Pró-Melhoramentos dos Moradores da Rocinha (UPMMR) para obter um comprovante de residência. Isso é o que garante a eles um endereço na favela.
O documento é utilizado para cadastro em programas do Governo Federal, abertura de contas bancárias, inscrição em cursos, compras de eletrodomésticos e para se cadastrar no Bolsa Família. Segundo a Associação, são emitidos, em média, cerca de 10 mil comprovantes por ano.
De acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Rocinha tem 72.021 moradores. A favela é a mais populosa do Brasil e “também apresenta o maior número de domicílios particulares (30.371 unidades)”, destaca o Instituto. Mesmo assim, quem vive no morro ainda precisa lutar pelo direito ao endereço.
Para ter o comprovante, é preciso se encaminhar à UPMMR com RG, CPF, uma testemunha com documentos pessoais e pagar uma taxa de R$10. O documento, válido por 90 dias, é um direito previsto na Lei 7.115/83.
A Rocinha é considerada um bairro desde 1993 e tem sua Região Administrativa criada em 1986. Apesar disso, segundo o mapa de Registro de Imóveis do Brasil, somente a parte baixa do morro tem lotes regulamentados. A área regularizada abrange localidades como Boiadeiro e Via Ápia, próximas a São Conrado.
Para Márcia Freitas, 46, consultora de vendas e moradora da Rocinha há 15 anos, o documento ajudou ela a conseguir acesso a programas governamentais, capacitação profissional e empregabilidade. Desde 2009, a cearense renova o comprovante de residência fornecido pela Associação para garantir o direito ao endereço.
“Precisei do meu comprovante quando fui fazer a prova do Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos). Meu filho, que tem síndrome de down, precisava do BPC (benefício de prestação continuada) e utilizamos também esse documento como prova de vida. O comprovante serviu quando tentei uma vaga de emprego, quando fiz meu cartão de crédito, cursos, cadastros… serviu muito!”, diz Márcia.
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E expressa o valor do documento. “É de uma importância absurda, porque não existe outro meio de comprovar que moro aqui. Poderia usar uma declaração de próprio punho, mas não é aceita em todos os lugares. Teria que ir no cartório autenticar, o que é uma burocracia e custo muito maior do que na Associação. Fico emocionada [de ter um comprovante]… até sei meu CEP (código de endereçamento postal) inteiro de cor!”.
Por outro lado, Paula Feitosa, 24, dona de casa no Trampolim, já perdeu empregos e oportunidades de capacitação profissional por não ter como comprovar onde morava. “A falta do comprovante afeta muito a minha vida. Não consigo uma entrega domiciliar porque não sei o endereço onde moro, porque [a casa] é em uma viela. Só sei o nome da localidade. Já fui desclassificada em entrevistas de emprego, cursos e não conseguia atendimentos bancários pela falta do documento”, reclama.
A moradora está em processo de tentativa para pedir o documento à UPMMR. “Acho essencial o serviço que fazem, porque ajudam as pessoas a comprovarem sua casa dentro da favela. Vou me sentir feliz quando conseguir comprovar meu lar e ter acesso aos serviços burocráticos”.
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Gisele Silva, 25, estudante de biologia e moradora da Dionéia, afirma que o comprovante é essencial. “Precisei para fazer a matrícula na faculdade, abrir firma no cartório e até para fazer um RioCard. Com ele, consigo falar que sou moradora da Rocinha e me sinto pertencente àquele lugar. Se preciso ir à Clínica da Família ou a um hospital e não tenho o comprovante de residência, não saberão me encaminhar para determinada equipe”, pondera.
A advogada e mestra de políticas públicas em direitos humanos, Paola Mendes, 35, explica que o comprovante de residência é um direito que precisa ser garantido pelo Estado. “É um documento essencial para provar diversas coisas, inclusive quando há qualquer tipo de envolvimento nos processos judiciais.
É fundamental que a população tenha esse direito [ao endereço]”. Ela também pontua a relação do documento ser mais do que um mero papel. “O comprovante de residência é relacionado ao direito à moradia. É um direito constitucional. A partir do momento que a pessoa não consegue comprovar moradia, é como se o Estado não soubesse que ela tem um lugar. É importante ter porque é a prova desse direito estar sendo cumprido”.
Segundo a UPMMR, são emitidos 840 comprovantes por mês. Em média, o número varia de 30 a 50 por semana. O vice-presidente da Associação, Marcondes Ximenes, explica por que os moradores procuram o órgão local e não se dirigem ao Cartório do 2º Ofício do Registro de Imóveis do Rio de Janeiro (2º RGI), no Centro.
“Aqui a gente vai especificar literalmente onde ele [morador] mora. O beco, a referência do local, o logradouro mais próximo. O processo aqui também é menos burocrático e a pessoa recebe o documento na hora”, diz Ximenes.
E ressalta: “O comprovante de residência é parte da dignidade do morador. Prova que ele não está jogado num canto qualquer, que existe e tem uma residência. Tem que ter essa legitimidade [do documento] como prova para conseguir emprego, matricular crianças na escola. Uma série de serviços que se não tiver o comprovante, torna o morador invisível perante a sociedade”.
Ocupação Territorial no Rio
Para Ximenes, a falta do documento ocorre devido às falhas políticas de décadas, que não acompanham o crescimento da favela. A UPMMR, por exemplo, é responsável pela produção dos comprovantes, pois a maioria da Rocinha não possui regulamentação fundiária, mesmo sendo um bairro oficialmente reconhecido.
“Nós disponibilizamos esse serviço porque é uma falha de anos. Quando foram feitos os projetos latifundiários, como o da Light com o cadastro de relógios no passado, a maioria das casas não foi validadas. Com o crescimento da Rocinha, muitos locais, becos, não tem logradouro reconhecido. É através da Associação que a gente faz esse trabalho e garante esse direito ao morador”.
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Já Luiz Cesar Queiroz, coordenador nacional dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT), do Observatório das Metrópoles, aponta que o Rio sofre ocupações complexas. Isso afeta diretamente as políticas territoriais, principalmente em favelas como a Rocinha.
“A constituição de 1988 criou a ideia da reforma urbana e levou à promoção da regularização maciça da ocupação dos solos nas cidades. A ocupação territorial carioca é marcada pela irregularidade, quando não obedecem às condições de uso. Também pela ilegalidade, no sentido de quem ocupou, não tem a posse. O mesmo processo acontece na Rocinha”, explica.
Caso você precise de um comprovante de residência, é necessário ir à Associação. A UPMMR funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h30, na Travessa Palmas, no 3, esquina com a Via Ápia.