A Lua brilha na Rocinha, mas o esgoto corre a céu aberto

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Nos últimos dias, uma fotografia chamou atenção nas redes sociais: a Lua cheia surgindo por trás das casas no alto da Rocinha. A imagem, feita por um fotógrafo talentoso, viralizou e encantou pessoas do Brasil e do mundo. “Parece um cartão-postal”, diziam alguns. “Pura poesia!”, comentavam outros. Mas, enquanto a foto conquistava curtidas e compartilhamentos, um questionamento se impõe: por que a beleza de uma cena como essa tem mais alcance do que a dura realidade enfrentada diariamente por quem vive aqui?

A Lua brilha sobre casas construídas em áreas de risco, onde famílias vivem sob ameaça de deslizamentos a cada chuva forte. Ela ilumina ruas sem saneamento básico, onde esgoto escorre pelas vielas e a água encanada não tem todos os dias. Reflete sobre becos mal iluminados, onde a falta de infraestrutura coloca em risco a segurança de quem precisa circular à noite. Nada disso, no entanto, viraliza com a mesma força.

Não é de hoje que a favela é retratada sob o filtro da romantização. Fotografias como essa são sempre acompanhadas de frases como “olha a vista que esse morador tem!” ou “a beleza da simplicidade”, como se viver sem direitos básicos fosse uma escolha charmosa. Essa visão deturpada transforma a precariedade em uma espécie de “exotismo urbano”, um cenário bonito para contemplação, mas sem o compromisso de entender ou mudar a realidade.

A estética da pobreza vende. Revistas e perfis de fotografia adoram explorar os becos coloridos, o céu alaranjado entre lajes improvisadas, as roupas no varal compondo um quadro “autêntico”. No entanto, raramente essas mesmas lentes se voltam para a falta de coleta de lixo, para os córregos poluídos ou para o sofrimento de quem espera horas por atendimento médico num posto de saúde sucateado.

E essa mesma Lua, será que brilha diferente no Leblon? Ou ali ninguém repara porque saneamento, infraestrutura e segurança são garantidos? No asfalto, a Lua pode ser só mais um detalhe no horizonte. Na favela, vira espetáculo porque contrasta com uma realidade dura que muitos preferem ignorar.

E não é que a gente queira ser militante o tempo inteiro. Também gostamos de admirar a Lua, celebrar as pequenas alegrias do dia a dia e exaltar o que há de bonito na favela. Mas não dá para normalizar tantos descasos onde moramos. Se a Rocinha fosse de fato prioridade para o poder público, essa mesma Lua estaria brilhando sobre ruas asfaltadas, saneamento garantido e espaços de lazer dignos para os moradores.

A Lua brilha sobre a Rocinha, mas ela também brilha sobre os sonhos de quem vive ali. Sonhos muitas vezes engolidos pela dura realidade da favela, onde, como diz Mano Brown, a vida é “cabulosa”. Ele, que também sonhava com um “lugar gramado e limpo, assim, verde como o mar”, compartilha uma visão de um futuro diferente para quem mora em lugares como a Rocinha.

Como o próprio Brown já cantou, “aqui é Capão Redondo, tru, não Pokemón”, e a vida não é tão simples como as fotos que viralizam. Não é só de beleza e poesia que a favela precisa. A visão da Lua sobre as casas da Rocinha não pode ser apenas uma metáfora romântica, ela deve ser também um lembrete de que os moradores merecem mais do que um cenário para fotos: merecem infraestrutura, direitos e dignidade.

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