Sem lideranças locais, Prefeitura cria comissão para fiscalizar mortes por Covid-19 na Rocinha
Em meio a flexibilização do isolamento social na cidade, a Prefeitura do Rio criou uma comissão para acompanhar e fiscalizar as mortes de moradores por Covid-19 na UPA da Rocinha. O ato foi publicado no Diário Oficial do Município no começo de junho, sem mais explicações dos objetivos.
Nenhuma liderança comunitária foi convidada para formar a comissão. Três funcionários vinculados a Empresa Pública de Saúde do Rio de Janeiro (RioSaúde) foram designados para compor o grupo. Segundo a empresa, nenhuma pessoa da sociedade civil pode participar porque não tem conhecimentos técnicos na área médica.
Todas as mortes que ocorreram na UPA da Rocinha a partir de fevereiro de 2020 serão revisadas. A comissão deverá produzir um relatório anual sobre o perfil epidemiológico dos óbitos ocorridos na unidade médica.
O médico Rafael Alvim Lobo é responsável por coordenar a comissão. O enfermeiro Robson Vieira da Silva e a farmacêutica Fabiana Silvestre dos Santos completam o grupo.
As Comissões de Revisão de Óbito, como são chamadas esse tipo de comissão, são obrigatórias em todos os hospitais públicos e privados, de acordo com o Conselho Federal de Medicina. A comissão é responsável por avaliar todos os óbitos na unidade hospitalar e, quando necessário, “analisar laudos de necropsias realizados no Serviço de Verificação de Óbitos ou no Instituto Médico Legal”, conforme descrito em uma resolução do conselho.
A não participação de moradores vai contra às diretrizes do Sistema Único de Saúde e do Ministério da Saúde, que diz ser obrigatório em a participação de 40% da sociedade civil em conselhos, comissões e conferências de saúde.
Mortes suspeitas e esquecidas
No mês passado, a Prefeitura do Rio anunciou mudanças no protocolo de contagem de óbitos por Covid-19. A nova contagem registrou centenas de mortes a menos em comparação com os números da Secretaria estadual de Saúde. Após a alteração no método de contagem, o painel da prefeitura ficou cinco dias sem divulgar os dados oficiais sobre óbitos pela doença.
Sem testagem, as mortes subnotificadas ainda não entraram nas estatísticas oficiais do Rio de Janeiro. A falta de exames para o coronavírus compromete o registro das informações. Baseado em informações incompletas, os poderes municipal e estadual podem estar cometendo equívocos ao promoverem flexibilizações. A taxa de contágio de Covid-19 tende a aumentar.
A ex-agente comunitária de saúde Rita Smith desconfia da atitude da prefeitura. Com longo histórico na luta pela redução nos índices de tuberculose na Rocinha, Smith ressalta que a transparência de dados é necessária. “Quando isso não é feito é porque tem algo a ser escondido. Não é transparente, não é respaldado, não é assinado e aceito pela sociedade civil que na realidade são as pessoas que pagam todos esses serviços”, conta a ex-agente comunitária de saúde.
O ativista e morador Jefferson Vieira avalia que a prefeitura age a algum tempo de forma excludente com os moradores de favelas. “Quando o gestor tem um olhar mais técnico e deseja fazer melhor uso do dinheiro público, ele escuta a sociedade civil. Isso é básico”, analisa ele citando a instalação do tomógrafo no terreno da Igreja Universal do Reino de Deus, e não na UPA da Rocinha, como exemplo da falta de diálogo da prefeitura com os moradores.
A ativista social Thais Ferreira avalia que a atitude da prefeitura é mais uma “manobra criminosa” para colocar a população, que mais precisa de política pública, a margem do combate a Covid-19. “Mesmo sendo uma comissão técnica, a gente sabe que a falta de transparência tem impactos negativos no combate a Covid-19. Estamos vendo os números do Rio e mostra a ineficiência tanto da prefeitura quanto do Estado no combate a essa doença.”, conclui Thais Ferreira.
A Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado do Rio de Janeiro (ArpenRJ) não quis comentar o assunto e se limitou a dizer que: “aos cartórios cabe realizar o registro de óbitos e não interpretar seus dados ou eventuais subnotificações, tarefas estas que são destinadas aos especialistas das respectivas áreas”.
O Conselho Nacional de Saúde e o Conselho Federal de Medicina não responderam até a publicação da reportagem. O espaço segue aberto para atualizações.
Em nota ao Fala Roça, a RioSaúde informou que toda a equipe da UPA da Rocinha foi trocada e, consequentemente, passaram a integrar a comissão. A existência de uma comissão está respaldada em uma resolução do Conselho Federal de Medicina. A nota também diz que não é função da Comissão de Revisão de Óbitos avaliar questões referentes a eventual subnotificação de óbitos por Covid-19 na Rocinha.
Leia a nota na íntegra:
Não é função da Comissão de Revisão de Óbitos da UPA Rocinha avaliar questões referentes a eventual subnotificação de óbitos por covid-19 na comunidade da Rocinha. A função de uma Comissão de Revisão de Óbitos é estritamente avaliar os óbitos ocorridos na unidade hospitalar pela qual é responsável.
A formação da Comissão de Revisão de Óbitos é técnica, por profissionais de saúde lotados na unidade. A atual comissão é formada por um médico, um enfermeiro e um farmacêutico, devidamente inscritos nos respectivos conselhos regionais das categorias profissionais.
Devido à troca de gestão da UPA Rocinha, em 21 de fevereiro, e da renovação de parte dos quadros profissionais, uma nova formação da comissão foi instituída no dia 4 de junho e publicada em Diário Oficial. A atuação da comissão será retroativa a 21 de fevereiro, revisando todos os óbitos ocorridos desde então na unidade, independentemente da causa da morte.
Todas questões referentes a criação, formação e atribuições das Comissões de Revisão de Óbito estão definidas na Resolução nº 2.171/2017 do Conselho Federal de Medicina.