Quem foi Maria das Dores, a cozinheira e compositora da Rocinha que lutou por saneamento básico nos anos 80

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Entre os becos estreitos da Rua 2 e Valão, uma voz firme e afinada despertava os moradores da Rocinha nas manhãs dos anos 1980. “Vem, vem, vem comigo trabalhar! Vamos limpar a vala pra favela urbanizar!”. Era Dona Maria do Teatro, ou melhor, Maria das Dores de Melo, mulher que dedicou a vida a transformar a favela em um lugar melhor. A história dela revela que, apesar do canto insistente de que a “favela venceu”, muito do que Dona Maria sonhou ainda não foi conquistado.

Rara foto de Maria das Dores mobilizando a população para mais uma ação na Rocinha. Reprodução: Varal de Lembranças

Nascida em 1939, em Sergipe, Dona Maria era filha adotiva de um deputado estadual. Mãe solo e com a filha mais nova ainda no peito, ela migrou para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. Trabalhou, principalmente, como cozinheira. “Quando cheguei aqui, não conhecia ninguém. Se eu tivesse uma pessoa parente ou amiga, teria trazido minhas filhas”, relatou no livro Varal de Lembranças, publicado em 1980.

D. Maria marcou a vida dos moradores do morro com arte, solidariedade e o trabalho dedicado à creche da Ação Social Padre Anchieta (ASPA). Como reconhecimento, eles decidiram homenageá-la dando seu nome à antiga Rua do Canal, no Valão, na parte baixa da Rocinha, por meio de um decreto municipal que alterou nomes de ruas da favela.

Nos anos 1970, ela criava canções ora para reivindicar por direitos humanos na favela, ora para desabafar sobre desilusões amorosas. Compor era uma das principais paixões dela. As canções “Limpar a Vala” e “Rosa Murcha” são exemplos. Era também religiosa e escreveu até uma cantiga para o Papa João Paulo II, que visitou o Vidigal, em julho de 1980. Após alguns meses, o Papa enviou uma carta de gratidão.

Vem, vem, vem comigo trabalhar! Vamos limpar a vala pra favela urbanizar!

Maria das Dores de Melo

Em 1977, ela ajudou a liderar um auto-censo para levantar informações sobre problemas locais, como a presença de mosquitos e a falta de saneamento básico. O objetivo era usar esses dados como instrumento para pressionar autoridades, exigindo melhorias concretas como a construção de uma passarela, pois acidentes fatais eram constantes. A mobilização, com abaixo-assinado e protestos, uniu as vozes do morro e ganhou atenção da mídia e autoridades, resultando na construção da passarela em 1978.

Arte para superar as mazelas

Com as canções, D. Maria convocava os moradores para limpar os valões e becos. José Martins, 77 anos, líder comunitário, relembra como a atriz animava a luta pela urbanização e saneamento básico. “Conheci D. Maria através da Igreja e dos mutirões. Uma figura feminina que fazia teatro e era compositora… até compôs uma música pra animar o mutirão. Ela andava com uma caixinha sonora, uma novidade na época, com microfone. Sempre super animada!”.

Ele canta, com um sorriso no rosto, uma das composições dela: “Vamos, vamos trabalhar! Vamos limpar a vala para a vida melhorar! Vamos limpar a vala para a vida melhorar!”. 

Aurélio Mesquita, 58 anos, ator que trabalhou ao lado da atriz, é outro amigo que guarda na memória o carinho da artista. Ele destaca o dom de atuar da líder comunitária e garante: se a atriz fosse rica, teria sido a “Fernanda Montenegro da Rocinha”.  

“Maria tinha uma coisa que era muito única:o dom de improvisar. Ela reunia o pessoal da igreja, das creches e ia para a vala limpar. Ficava animando a galera fazendo versos sobre o que estava fazendo e sobre quem estava também. Tinha uma função dupla: além de ser uma líder comunitária, animava o povo com seu teatro”, conta.

Marly de Souza, 61 anos, conselheira tutelar, exalta a importância da artista. “Ela foi uma pedra de ouro dentro da Rocinha. Tinha uma música que ela cantava pra mim e pro meu filho sobre nossa beleza. ‘Nega bonita, foca no sorriso e esquece a cor. Só você conhece a sua dor.’ Ela tinha um dom de acalentar as pessoas. Quem passou pela D. Maria, nunca vai esquecer, porque pra cada pessoa ela deixava uma palavra de amor”.

*Matéria publicada originalmente na 19° versão impressa do Fala Roça

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