Quem nos representa? Um olhar da Rocinha sobre política, representatividade e corrupção
A favela é sub-representada na maioria dos espaços de poder mas transborda exemplos de pessoas que, através da diversidade, podem trazer a renovação política que tanto se fala por aí
Um levantamento realizado pelo Jornal Fala Roça mostra que os moradores da Rocinha não estão nem um pouco satisfeitos quando o assunto é política. 93,6% dos participantes se dizem mal ou muito mal representados pelos políticos atuais. Os resultados são muito similares aos de uma outra pesquisa realizada no início de 2018 pelo Instituto Locomotiva/Ideia Big Data, em que 96% dos brasileiros não se sentiam representados pelos políticos em exercício no país, na época.
A pesquisa foi feita com 155 moradores da Rocinha, entre os dias 18 e 22 de fevereiro de 2021. O levantamento completo pode ser consultado aqui.
Mesmo sendo a maior favela do Brasil, a Rocinha tem dificuldade em eleger candidatos locais
Nas eleições de 2020 a Rocinha teve onze candidatos que, somados, alcançaram 9.089 votos. Nenhum deles foi eleito. Com uma população oficial de aproximadamente 69 mil habitantes (CENSO 2010) ou até mais, pois os dados estão desatualizados, a Rocinha é maior do que cerca de 92% dos municípios brasileiros. Mesmo com toda essa expressividade, apenas um candidato local foi eleito até hoje. Em 2008, Claudinho da Academia conquistou uma cadeira na Câmara de Vereadores do Rio com mais de onze mil votos, mas não chegou a concluir o mandato. Ele, que foi também presidente da Associação de Moradores, faleceu aos 39 anos, em junho de 2010.
Novas eleições, mesmas ‘caras’ eleitas
Enquanto 56,10% da população brasileira é composta por pessoas negras e pardas, somente 37,24% dos prefeitos e vereadores eleitos em primeiro turno em 2020 são pardos e apenas 5,61% são negros. Ainda que 51% do país seja composto por mulheres, elas correspondem a apenas 15,7% dessas pessoas eleitas. Os dados são do Tribunal Superior Eleitoral e IBGE. Considerando apenas esses dois critérios de raça e sexo, é possível afirmar que, proporcionalmente, os políticos não representam a população brasileira. Há um distanciamento entre o povo e suas necessidades e os políticos e seus interesses. Isso evidencia também o quão desigual é toda a organização da nossa sociedade, o que é um prato cheio para um dos grandes desafios do país: a corrupção.
“Quando escuto que o brasileiro é um povo corrupto eu fico indignado. Claro que o Brasil é um país com muita corrupção, mas colocar isso na conta do povo, além de extremamente injusto, atrapalha na compreensão (e solução) do problema. É um pouco como aquela frase: “o Brasil não é um país pobre, é um país com muita pobreza”. Todos os mais graves problemas do nosso país, todos eles, só podem ser realmente compreendidos sob a ótica das desigualdades. O problema grave da corrupção não é diferente”, explica Bruno Brandão, Diretor Executivo da Transparência Internacional no Brasil.
Representantes que não representam
Como confirmam 81,9% dos participantes do levantamento feito pelo Fala Roça, a população da favela sente mais os efeitos da corrupção e 92,3% também acredita que a corrupção aumenta os efeitos da desigualdade. Tentando driblar esse cenário, pessoas e organizações se mobilizam para provocar as mudanças que desejam em seus territórios.
Na tentativa de minimizar a ausência de políticas públicas e de frear os impactos da covid-19 nas favelas, por exemplo, moradores se organizaram para fazer frente a um problema comum não somente nesse período, mas que apareceu com força total durante a pandemia: a fome. Diversos coletivos e movimentos comunitários arrecadaram toneladas de alimentos para distribuir para os moradores. Michelle Lacerda, 33 anos, mulher negra, nascida e criada na Rocinha é uma dessas pessoas que foi para a linha de frente.
Ações independentes em favelas escancaram ausência do poder público
Michelle é uma das coordenadoras do coletivo A Rocinha Resiste, uma das iniciativas que tentou conter o avanço da pandemia no território. Com a ajuda de cerca de 600 voluntários, o grupo arrecadou 5,8 toneladas de alimentos, que foram entregues de casa em casa entre abril e junho do ano passado.
Michelle explica que a movimentação do grupo durante a pandemia começou na simples tentativa de conscientizar as pessoas sobre a importância de lavar as mãos como forma de evitar o contágio, mas isso esbarrava na falta de água e sabão nas casas das pessoas. Eles também incentivaram a prática do isolamento social, mas logo ficou claro que, para muitas famílias, isso implicava diretamente em perder as fontes de renda e meios de colocar comida na mesa, explica ela. Tentando resolver um problema, eles se depararam com muitos outros. “É necessário ouvir as pessoas para saber do que elas precisam”, completa ela.
Representatividade na política como instrumento de renovação; mais que importante, necessária
Apesar de ser voluntária no coletivo A Rocinha Resiste e de ter que trabalhar em outros lugares para se manter, Michelle explica: “o trabalho no coletivo é o carro-chefe do que sou, onde predomina a minha pessoa, onde eu posso me expressar como indivíduo”. Graduada em Gestão de RH, na quarta tentativa de concluir o ensino superior, ela demonstra orgulho em dedicar parte do seu tempo para o projeto. “No ARR eu posso levar não só alimento, mas também dividir o que eu aprendi nos lugares que circulei, como na academia”, completa.
Considerando o perfil social do Brasil, a trajetória de vida da Michelle dá conta da problemática da ação frente à ausência do poder público. “Esse corpo político está sempre envolvido em políticas não-partidárias, mas eu faço política do cotidiano, política de vida, pro melhoramento e para resistência do lugar onde eu vivo”, explica Michelle, que não pretende transformar sua trajetória em uma candidatura. “Eu trabalho dentro da máquina política e vejo o quão injusta ela é. A minha presença lá também é um ato de resistência ao mostrar um fazer político mais focado no afeto, no lado humano”, completa ela.
Essa representatividade funciona como uma forma de trazer ‘o povo’ para dentro dos espaços onde a nossa vida é decidida. Nesse sentido, encurta a distância entre quem vive e quem faz a política, deixa a população mais perto desse “fazer”, tanto para participar quanto para cobrar, fiscalizar. Ter mais ‘gente da gente’ nesses espaços onde nós geralmente não chegamos pode trazer uma cenário menos corrupto e que, de fato, reflita os interesses de toda uma sociedade, não só de um grupo pequeno de interessados.
“Tanto melhor estaremos se, pela via do aprofundamento democrático, garantirmos que (essas pessoas) ocupem não só o mundo do trabalho, mas os espaços de poder na gestão do Estado e na política. Aí sim estaremos desmontando as estruturas da corrupção, que, assim como todos os nossos grandes problemas nacionais, se assentam sobre nossas profundas desigualdades”, finaliza Bruno Brandão.