
IBGE diz 72 mil, mas moradores questionam e relatam subnotificação no Censo 2022
Entre dados oficiais e percepções locais, o verdadeiro número de habitantes na Rocinha segue em debate, entenda a pesquisa e a opinião pública
À noite, a Rocinha vira um céu estrelado para quem passa pela Autoestrada Lagoa-Barra. Vista de fora, reflete grandeza e acolhe milhares de pessoas de diversas regiões do Brasil em busca de oportunidades. Conforme aponta o Censo Demográfico 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Rocinha permanece sendo a maior favela do país, com 72.021 habitantes. O título traz visibilidade, mas também gera discussão nas redes sociais e grupos de WhatsApp.
Para os moradores, o dado parece não representar de fato a quantidade certa da população da Rocinha. Além das dúvidas, a informação gera preocupação, pois a criação de políticas públicas para o morro, nas três esferas do Poder Executivo — municipal, estadual e federal —, são baseados na contagem do Censo e o perfil socioeconômico do território levantado pelo IBGE.
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“Acredito que tenha bem mais, pelo menos 100 mil. O censo é importante para os planejamentos de infraestrutura, saneamento básico e melhorias para a favela. É necessário saber o número mais próximo possível da realidade, um número falacioso atrapalha a execução dessas melhorias”, Lorenna Almeida, 24, estuda biologia e mora na Cachopa

“Acredito que haja mais pessoas. Quem mora a mais tempo tem notado pessoas novas vindo morar aqui. Acho que com todas as mudanças sofridas na Rocinha e a sua visibilidade, isso acaba ampliando o número de moradores. Segundo o IBGE, em 2010, eram 69 mil. Então, seria um aumento de apenas 3 mil. Pode acontecer, mas quando olhamos as dimensões da Rocinha hoje e, comparamos com 15 anos atrás, é bem diferente”, Fernando Gomes, 25, é geógrafo e vive no Boiadeiro.

“Creio que existem muito mais do que 72 mil pela quantidade de casas, o alto fluxo de pessoas circulando diariamente. [Nós] percebemos que a contagem do IBGE não contemplou a maioria dos habitantes, talvez, por dificuldades de acesso em algumas regiões”, Laura Machado, 24, é estudante e mora na localidade Sete.

“Tem mais! Pela massa populacional que vejo, parece ter mais! Essa dimensão da quantidade de pessoas que vivem aqui [é importante] pra saber quanto deveria gastar e quanto deveria investir pro pessoal”, Ricardo Gaucho, 43, mora na Rua 4.

“Aqui já tem mais! Lá atrás, eu vi uma reportagem [dizendo ser] acima de 100 mil. Isso é importante pras políticas públicas chegarem, mas tem que saber o número exato. Antigamente, só tinha um posto de saúde, não tinha como dar conta. Agora são três, mas será que dão conta?”, Antônia Gomes, 46, é professora e vive no Trampolim.

“Pela aglomeração, eu acredito ter muito mais. Dá pra perceber que os problemas são maiores do que os apresentados. Se tivesse mais políticas públicas para o tamanho certo da população, tudo seria melhor”, José Vasconcelos, 59, é autônomo e mora no Valão.
Polêmica antiga
O debate sobre o tamanho real da população da Rocinha é antigo. É comum moradores e organizações locais lidarem com informações diferentes. Entre as cinco fontes consultadas pelo Fala Roça, por exemplo, há uma variação do número total da população em média de 10 mil moradores, quando cruzamos os dados de cadastro de usuários das Clínicas da Família com outros estudos, incluindo o Censo 2022.
Mas a flutuação no número populacional da Rocinha também pode ser bem menor. Por exemplo, nos dados coletados pelo PAC (2009) e pelo IBGE (2022), a diferença fica em apenas 1.389 pessoas. Já as informações fornecidas pelo 13º Conselho Tutelar/São Conrado (2023) geram uma divergência de mais de 144 mil, em relação aos dados do Censo.
A divergência das estatísticas causa insegurança e dúvidas na população sobre os processos de produção e coleta dos dados. Sobretudo, amplia a sensação de que as pesquisas não conseguem traduzir em números a verdadeira realidade da Rocinha.
Para Marcondes Ximenes, vice-presidente da Associação de Moradores da Rocinha, os problemas de coleta de dados no morro estão relacionados com a falta de integração entre o IBGE e moradores, a complexa geografia da Rocinha e a baixa divulgação da pesquisa em canais de comunicação locais.
“Na Cachopa, Alto do Terreirão e na Roça, a maioria dos moradores relatam que não responderam o Censo porque não chegaram lá. Aqui, internamente, faltou [a comunicação] ser mais direcionada. Ficou muito vago! A gente tem ótimos canais aqui dentro de informação, influencers, a própria página da Associação… E a divulgação na mídia ficou sendo esporádica. Caia no esquecimento”, critica.

Mas afinal, como a pesquisa é feita?
O IBGE explicou que, os dados populacionais do Censo 2022 na Rocinha, foram coletados a partir de uma pesquisa detalhada que envolveu o mapeamento do terreno e dos domicílios, dividindo a favela em 120 pequenas áreas. Cada recenseador, profissional responsável por coletar as informações, percorreu de dois a três setores para anotar todas as casas existentes, e daí eles realizaram entrevistas com os moradores, explica Gabriel Teixeira, coordenador operacional do Censo Demográfico de 2022, no Rio de Janeiro.
Ele também pondera que o trabalho de pesquisa na Rocinha enfrenta certos desafios como: “a dificuldade do ordenamento dos domicílios” e “o crescimento [da favela que] não segue uma lógica ordenada como o resto da cidade”, afirma Gabriel Teixeira.
Para ele, há uma dificuldade de “deslocamento” dos agentes censitários no território, uma vez que a Rocinha “é um vale muito vertical com áreas de difícil acesso”. Segundo Teixeira, o IBGE enfrentou ainda a insegurança de muitos moradores em responder ao questionário do Censo 2022.
Por todos esses desafios, segundo o superintendente do IBGE, José Francisco Carvalho, uma outra estratégia utilizada na Rocinha foi a contratação de moradores de favelas por meio de edital. “Trabalhamos com toda uma estrutura de subáreas, com agente censitário municipal, supervisores e pessoas do próprio morro, para facilitar o trabalho”.
Ágatha Barrozo, 28 anos, atuou como supervisora censitária. Ela aponta um fator extra que impactou diretamente a contagem do Censo IBGE: a falta de recenseadores contratados. “A coleta deveria ter sido feita em três meses, considerando a quantidade de pessoas estimadas, mas não tínhamos o número necessário de profissionais para isso. Faltou gente e organização, faltou muita coisa para que essa coleta fosse bem feita”, critica.
Em 2021, o ex-presidente Jair Bolsonaro cortou a verba para o Censo IBGE. O orçamento original era de R$3,4 bilhões, mas foi reduzido para R$2,3 bilhões. O corte de mais de 1 bi, desencadeou uma corrida para recomposição dos recursos para a pesquisa, mas o orçamento final se manteve em R$2,3 bi.
Com isso, houve uma limitação na logística do IBGE na realização do Censo, agravado pela dificuldade de contratação de recenseadores devido à baixa remuneração. Na Rocinha, alguns profissionais abandonaram o trabalho por conta de atrasos no pagamento de salários.
“Alguns persistiram, mas muitos desistiram porque estavam contando com aquela renda, e não receberam”, explica Ágatha Barrozo. Previsto para ocorrer a cada 10 anos, o Censo de 2020 foi adiado diversas vezes, não só pelas restrições orçamentárias, mas também pela pandemia de Covid-19.
Dados X percepção
A percepção de que os dados populacionais das favelas estão subestimados pelo Censo 2022 não é exclusividade dos moradores da Rocinha. Dalcio Marinho, geógrafo e ex-coordenador-geral do Censo Maré em 2013, explica que os desafios enfrentados pelo último estudo, somados às mudanças sociais, podem sim impactar o número total de moradores contados na Rocinha.
“Em 2010, o Censo do IBGE contou na Maré cerca de 130 mil moradores. Três anos depois, em 2013, nós fizemos o nosso censo, não para contestar, mas para buscar informações complementares às do Censo do IBGE. E, o nosso [Censo Maré], não trouxe um dado da população muito diferente. Foi de 3 mil moradores num universo em que o IBGE tinha contado 130 mil”.
A experiência relatada pelo geógrafo revela a importância de analisar as informações censitárias para além das percepções iniciais. Os dados precisam ser avaliados de forma qualitativa, pois o levantamento realizado pelo IBGE não é apenas uma coleta quantitativa da população das cidades. A pesquisa traz informações sobre condições de vida, emprego, renda, acesso a saneamento, saúde e escolaridade, entre outros.
Outro ponto importante para entender a possível falsa percepção de que os dados possam não ser confiáveis, é compreender a diferença entre a coleta de domicílios ocupados e o número total da população.
De acordo com o estudo, enquanto a população registrou um aumento de aproximadamente 4%, o número de residências cresceu 30%. “Você vê nisso aí uma queda na fecundidade e a emancipação dos membros da família, que tivemos nos últimos anos”, explica Dalcio.
Se por um lado é fato que o Censo 2022 enfrentou problemas significativos — e até dificuldades logísticas em áreas de “ocupação irregular” como as favelas —, por outro, de fato o IBGE conseguiu captar a redução do crescimento populacional em muitas regiões. Fenômeno que se deve à queda da fecundidade, transformações nos padrões de ocupação dos domicílios e sobretudo, pelas dinâmicas migratórias internas.
Todos esses fatores contribuem diretamente para o número populacional das cidades e das favelas ou comunidades urbanas, como a Rocinha. No Rio de Janeiro, por exemplo, os dados do Censo 2022 revelaram uma redução de 1,7% da população.
Medidas adotadas
Para contornar os desafios de realizar o Censo em favelas, o IBGE fez uma parceria entre a Central Única das Favelas (CUFA). O projeto Favela no Mapa foi uma estratégia confiável e importante para Marcos Vinícius Athayde, diretor da CUFA Global. “O projeto surge de uma necessidade e uma dificuldade que o IBGE tinha de conseguir o acesso às favelas e conseguir encontrar as pessoas”, afirma.
Apesar dos moradores questionarem os dados divulgados pelo IBGE, Gabriel Teixeira, coordenador operacional da pesquisa no Rio de Janeiro, contesta a sensação de que haja “erro”, pois “para o IBGE, não há subnotificação”.
“Nós fazemos o Censo há quase 90 anos divulgando resultados e, toda vez que a gente faz, tem essa dúvida [dos moradores] na Rocinha. Peço que as pessoas acreditem [nos dados apurados], porque foi um trabalho muito árduo e [feito] com muito esforço para chegar na realidade, que é o nosso objetivo”, esclarece Teixeira.
Porém, a pesquisadora Ágatha Barrozo, cria local, afirma que faltou treinamento mais extensivo para a equipe de recenseadores, que atuaram posteriormente na Rocinha. “Acredito, sim, que esses dados foram subnotificados”.
A precisão dos dados populacionais para o desenvolvimento eficaz de políticas públicas é essencial em qualquer cidade brasileira. Entretanto, para as favelas, a produção dessas informações é uma questão de sobrevivência. Elas permitem dimensionar corretamente as necessidades em áreas como: educação, saúde, saneamento básico e infraestrutura, facilitando o diálogo com o poder público e potenciais parceiros privados.
Marcondes Ximenes afirma que os dados do IBGE são usados para tudo na associação de moradores. “Junto à Prefeitura, quando eles requerem algum tipo de serviço mais complexo, principalmente obras e outros tipos de melhorias que acabam se arrastando. A gente tem um déficit de décadas da Light, porque a Rocinha cresceu e o serviço não acompanhou”.
E conclui: “E todo verão é a mesma história de falta de energia. Então, a gente acaba usando esses dados [da Light] para embasar a nossa cobrança para que esse serviço seja proporcional à quantidade de habitantes que a gente tem hoje.”