Fornos urbanos: o aumento do calor e a baixa na qualidade de vida na Rocinha; entenda

Com a chegada do verão carioca com altas temperaturas, o fenômeno climático que mais mata revela o cotidiano de quem vive na favela

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Por Thiago Silva, Miguel Honorato e Jackson Lima*

Com 48,3 mil pessoas, segundo Censo do IBGE (2022), a Rocinha é uma verdadeira “cidade” resumida em becos, lajes e vielas. Essa densidade cria um ambiente urbano propício para um fenômeno conhecido como “ilha de calor”: quando superfícies artificiais, como o concreto e o asfalto, acumulam calor durante o dia e o liberam lentamente à noite. A maior favela do Brasil sofre ainda com falta de saneamento, situação que intensifica esse processo. Com sucessivas quedas de de luz, principalmente no verão carioca, as casas se tornam fornos urbanos. 

É o caso de Ana Paula Mossoró, 42, cabeleireira e moradora da Rocinha. Ela conta que desde os 10 anos de idade sofreu com o calor na comunidade, mesmo a favela ainda não sendo o grande centro urbano que é hoje. À época, a falta de acesso a aparelhos de refrigeração como ar-condicionado e ventiladores, tornava difícil os períodos quentes. 

Ana Paula Mossoró, 42, conta que já passou calor extremo na favela

“Quando o sol bate, ninguém aguenta ficar em casa. A gente tenta molhar o chão, pendura lençol molhado na janela, toma banho várias vezes. Mas não resolve. O calor não passa!”, diz. A moradora lembra que o problema vai além do desconforto.: “Tem muita gente ficando doente. A minha vizinha teve crise de asma direto esse ano. O calor é pesado demais”, lamenta. 

Nos últimos meses, o Rio de Janeiro registrou recorde de temperatura: 44°C, a maior em uma década. Mas, nos bairros periféricos e nas favelas, a sensação térmica pode ser até 10°C mais alta, segundo estudos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

A enfermeira Maria Helena Carneiro de Carvalho, 68 anos, diretora da Clínica da Família Dr. Albert Sabin, na Rocinha, confirma que o calor extremo já tem consequências diretas na saúde dos moradores. O aumento das temperaturas agrava quadros crônicos e expõe a população mais vulnerável organizada por idosos, crianças e trabalhadores que passam o dia nas ruas”, afirma a diretora.  De acordo com a Secretária de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, apenas em janeiro de 2025, mais de 3 mil pessoas sofreram com problemas de saúde ligados ao calor.

“Quando está ficando mais quente, a tendência é que esse problema piore. Principalmente, com a falta de ação do serviço público que, indiretamente, não tem melhorado muito”, relata Maria Helena.

Equipe de Agentes Comunitários de Saúde trabalhando. Foto: Jackson Lima

O calor afeta o sono, a produtividade, a saúde mental e agrava doenças respiratórias e cardiovasculares. Situação que se agrava , ainda mais em um contexto no qual serviços básicos, como energia e água, tendem a faltar em períodos quentes.

Calor demais, água de menos

De acordo com a arquiteta Tatiana Terry, professora da PUC-Rio, o fenômeno para os transtornos de saúde são causados pelas  ilhas de calor urbanas. “Quando a vegetação é substituída por asfalto e concreto, a cidade perde sua capacidade natural de resfriamento. Esses materiais absorvem o calor durante o dia e o liberam à noite. O resultado é um aumento contínuo da temperatura nas áreas mais densas e pobres”, explica.

A Rocinha é um exemplo extremo desse processo. O desaparecimento de áreas verdes, o acúmulo de construções e a precariedade dos serviços públicos formam um ciclo vicioso, que se reflete em doenças e condições físicas.“É o que chamamos de injustiça climática”, diz Tatiana. “As pessoas que menos contribuíram para a crise climática são as que mais sofrem com ela”, completa. 

A interrupção do abastecimento de água e luz é um problema  frequente na Rocinha, que se  intensifica no verão devido  ao excesso de ar-condicionados ligados ao sistema de luz. A comunidade também não tem saneamento básico adequado.  

Apesar de ser uma das comunidades mais conhecidas do mundo, a Rocinha ainda é excluída dos mapas turísticos oficiais do Rio de Janeiro, assim como outras favelas da cidade. Para Tatiana, essa ausência não é coincidência. “Quando o Estado apaga esses territórios dos mapas, também apaga a responsabilidade de planejar políticas públicas para eles. A exclusão simbólica se reflete em exclusão ambiental e urbana”, ressalta a arquiteta. 

A indiferença do estado em relação à favela coloca a população em situação de risco. De acordo com a cabeleireira Ana Paula, o problema  é sistemático. “A questão é ambiental, não apenas estrutural. A parte elétrica da Rocinha é uma porcaria, mas o calor é um problema global”, opina a moradora.

*A reportagem é fruto da parceria entre a disciplina de Extensão em Jornalismo e Cidadania, do curso de Comunicação da PUC-Rio, ministrada pela professora Lilian Saback, e o jornal Fala Roça. A colaboração, iniciada em 2022, busca promover uma formação jornalística mais humana, que desafie estereótipos e repense as narrativas sobre a favela.

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