Palhaço Haroldo da Rocinha: ‘Vi as crianças nos celulares e descobri que ali acabou o palhaço’
Na movimentada Via Ápia da Rocinha, a voz de um homem alto, de camiseta, calça jeans e com um óculos de armadura preta disputa a atenção de quem passa entre as motos e carros. É Haroldo Pereira da Silva, de 65 anos, o icônico Palhaço Haroldo, figura marcante em diversos eventos, aniversários, shows e cerimônias nos últimos 30 anos.
Nascido em Saracuruna, distrito de Duque de Caxias, o primeiro contato de Haroldo Silva com a zona sul do Rio foi trabalhando como segurança no Hospital Municipal Miguel Couto, na década de 80. Insatisfeito com o emprego, ele optou por sair da unidade hospitalar, em 1984, e conseguiu uma vaga de segurança patrimonial no campus da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), há poucos metros do hospital.
Além de ser um dos responsáveis pela segurança no campus da PUC-Rio, ele também se destacava nos concursos de poesias da faculdade, onde adotou seu nome artístico Harnold Avlis para assinar os poemas que fazia. “Harnold é Haroldo sem a letra O e Avlis é Silva de trás pra frente”, explica.
Os poemas apareceram na sua vida após a perda precoce de um filho. A arte foi um caminho para superar a perda familiar. “Mas a vida sempre me apontou para o caminho das artes, sempre me apareceu oportunidades neste sentido e eu fui de cabeça em tudo, dirigi grupo de teatro, atuei em duas peças e tenho vários shows na conta”, afirma o artista que estudou até o ensino médio.
De Caxias pra Rocinha
A relação com a Rocinha ganhou forças em meados dos anos 80 quando Haroldo passou a dormir na casa de amigos na tentativa de evitar o cansativo deslocamento de até 35km para chegar até Saracuruna. Na Rocinha, a distância caiu para aproximadamente 5km.
“Assim que cheguei na Rocinha fiz muitos amigos, tenho muitos até hoje, mas naquele tempo eu conheci um cara muito especial que sinto uma saudade absurda, o senhor Avelino da Silva que na época fazia Radio Katana. Com esse cara eu aprendi muito, aprendi tanto que a profissão que ele me ensinou a ser eu faço com orgulho até hoje”, conta emocionado.
Entre os anos 80 e a metade dos anos 90, as rádios comunitárias dominavam a Rocinha. Katana, Brisa Rio e a Rádio Rocinha alcançavam milhares de moradores através das caixinhas de postes e frequências AM. Algumas dessas rádios comunitárias existem até hoje. “Eu tinha um programa “Momentos Culturais”, às terças-feiras, era 1h de música clássica, poderia ser clássicos da MPB e clássicos internacionais, era um sucesso total. Ganhei uma grana boa com locução também, na época nem era o Real, foi Cruzado e Cruzado Novo”, brinca Haroldo Silva ao mostrar cheques antigos guardados em uma pasta de acervo dos trabalhos realizados.
A fama local transformou Haroldo Silva em um dos locutores mais conhecidos e disputados para trabalhos, que fazia paralelo ao seu de segurança na PUC-Rio, onde se manteve até 1995. Por 18 anos, ele foi locutor oficial dos eventos na Acadêmicos da Rocinha, onde também já foi vice-presidente do departamento cultural e viu crescer a escola que antes se chamava Império da Gávea. Apresentou shows na Rocinha com Steven B, Ivete Sangalo, Gilberto Gil, Banda Calypso, Leci Brandão, Dercy Gonçalves e outros 37 nomes que trabalhou dentro e fora da favela, como nos palcos do Canecão por onde também passou.
No teatro, Haroldo Silva criou o palhaço Haroldo. Nos últimos anos, a roupa colorida e o nariz vermelho eram guardados para dar lugar à roupa vermelha de Papai Noel. Na noite de Natal, ele descia o morro percorrendo os becos e ruas da Rocinha para desejar Feliz Natal e entregar os presentes. Foi parando aos poucos, até parar de vez. “No natal sempre foi difícil pra mim, eu deixava a minha família para cuidar da família dos outros. Eu saía de casa 14h vestido de Papai Noel e saia pelo morro todo dando presentes”.
Traumas da profissão
A vida de palhaço nunca foi fácil. O artista percebeu que havia chegado a hora de se afastar das festas após um acontecimento: “Quando chamei todo mundo para brincar, eu notei as crianças nos cantos, em grupinhos, tudo no celular. Descobri que ali acabou o palhaço. E antes quando eu chegava nas festas todo mundo já queria brincar e vinha correndo, mas esse grupo só me deu atenção quando eu perguntei ‘quem queria um celular’, aí todo mundo levantou”, relembra.
Para ele, a educação também mudou muito. “As crianças passaram a se tornar violentas, começaram a dar chutes na canela, puxar o nariz do palhaço e isso dói muito, fisicamente e emocionalmente”.
30 anos depois, Haroldo Silva agora dá atenção aos sete filhos de casamentos diferentes. Não faz mais festas, vive apenas de locuções comerciais. Com uma disposição que já não é a mesma de antigamente, resta apenas as lembranças dos bons momentos vividos e observar de longe os jovens que circulam pelos becos e vielas.
“Sinto falta dos amigos que fiz, da galera que já se foi, da Rocinha de antigamente. Havia respeito por tudo e por todos, muita coisa boa de fora chegava aqui, e eu sou um dos poucos vivos que presenciei tudo isso. Hoje a molecada tá muito diferente, os tempos são outros”.
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