Como é envelhecer na Rocinha com um dos piores IDH do Rio
O nosso ponto de encontro foi a praça em frente ao Centro Municipal de Cidadania Rinaldo de Lamare. O local é frequentado quase diariamente por minhas três entrevistadas: Maria Dalva de Oliveira, de 77 anos, Lindacy, de 66, e Márcia, de 63. Elas participam da Casa Naná, um espaço de convivência para a terceira idade, que funciona no 11º andar do prédio. A casa promove diversas atividades, desde a prática de dança e ginástica, até jogos e aulas de artesanato. Tudo isso de forma gratuita.
A interação com outras pessoas, o lazer e o aprendizado de novas habilidades, produzem efeitos não só na autoestima de quem frequenta a Casa Naná, mas benefícios na saúde física e mental. É o que mostra as histórias de Maria Dalva, Lindacy Menezes e Márcia Maria Silvestre: o envelhecimento pode ser bem vivido. Inclusive, dentro da Rocinha.
No Brasil, são considerados idosos, pessoas com 60 anos ou mais. Essa população está crescendo e se tornando cada vez mais representativa. Em 2010, eram cerca de 20,6 milhões de idosos no país. Apenas na capital são cerca de 1,3 milhão de idosos, o que representa 20% da população da Cidade do Rio.
São várias as formas de viver a velhice. Há quem prefira passar a tarde em frente a TV, opte por embarcar em excursões para conhecer novos lugares ou precise trabalhar para sustentar a si próprio, ajudar os filhos ou netos. Uma conversa sobre a terceira idade precisa deixar para trás alguns estereótipos e entender que esse grupo é tão diverso quanto qualquer outro.
“Eu tenho um encontro da terceira idade no Palácio do Catete. Lá tem uns senhorzinhos que fazem música ao vivo, tocam canções mais antigas. Quando não está chovendo, eu passo minha tarde de sábado lá”. Além de encontrar amigos, Dalva afirma que por lá, também faz novas amizades. Aos 77 anos, o encontro é apenas uma das atividades que a aposentada mantém na rotina. Ela “bate ponto” na Casa Naná de segunda a sexta-feira, há 20 anos.
“Essa casa me fez viver! Minha segunda casa é esse lugar”, diz Maria Dalva.
Dalva também participa de aulas de hidroginástica no Complexo Esportivo da Rocinha. A atividade se tornou ainda mais importante depois que o joelho começou a sofrer com os efeitos da artrose. Ela garante que a rotina movimentada reverbera na saúde mental. “Eu não me sinto bem ficando dentro de casa. Se você tem toda essa atividade, você já acorda feliz, acorda com planos”, opina.
Mas ela sabe que, para manter essa rotina, nem sempre apenas ter vontade é o suficiente. Dalva vive em Vila Canoas, uma favela em São Conrado, mas conhece bem a Rocinha. Além dos amigos e parentes que vivem no local, ela mesma já morou na Rocinha quando criança. Porém, quando a idade vai se somando, as ladeiras e escadarias vão se transformando em obstáculos.
“Tem muitas amigas minhas que não têm condição de estar saindo e, por causa do meu problema de artrose, eu não consigo ir na casa delas porque tem muita subida”, explica. “Quanto mais em cima, mais difícil é”, completa.
Autocuidado e coletividade
“Eu aprendi a sobreviver pela Márcia, aprendi a me amar”. É o que garante Márcia Maria Silvestre, de 63 anos, que diz não ter aprendido essa lição do dia para a noite. Foram quase 13 anos lutando contra o vício em drogas, como o álcool. Aos 28 anos, deu um passo decisivo para mudar o rumo de sua história. Ela entrou para um grupo dos Alcoólicos Anônimos e, com isso, conseguiu deixar o vício para trás.
“É um grupo que existe há mais de 45 anos dentro da Rocinha. Meu pai fazia parte e, depois de um tempo, eu assumi”, conta ela, que participa há 35 anos da irmandade. Nascida e criada na Rocinha, Márcia mora na Rua 2, e conta que o passado conturbado trouxe sabedoria para ajudar outras pessoas.
Por muitos anos, trabalhou com projetos sociais dentro da Rocinha. Fala com carinho sobre o projeto Curumim, direcionado ao atendimento de crianças e adolescentes moradores da Rocinha e, também, em situação de rua. Eram meninos e meninas considerados “problemáticos”. “Eu fui considerada uma criança difícil, uma adolescente problema. Aprendi a lidar com eles por conta dessa vivência”, explica.
Aposentada, ela ainda faz trabalhos voluntários e está sempre ajudando outras pessoas: “consigo cesta básica para um, remédio para outro… Eu sempre estou ativa”. Ela conta que todo esse movimento traz ânimo e motivação, e produz efeitos no seu bem-estar. “Eu não paro! Sempre tem alguém batendo na minha porta falando que tá precisando de alguma coisa. Isso também me ajuda, me faz bem saber que sou útil”, pondera.
E diz orgulhosa: “São 63 anos dentro dessa favela”, conta Márcia Maria Silvestre.
Nesse período, Marcia viu a Rocinha e entorno se transformarem. “Isso aqui”, aponta para as avenidas em frente ao Rinaldo de Lamare, “não tinha nada, era mato”. Márcia é da época que não existia túnel. Ela viu, aos pouquinhos, as casas de madeira e stuck (um tipo de mistura que parece barro) darem lugar às atuais casas de alvenaria. O surgimento de um comércio aquecido está entre as mudanças que ela mais valoriza. “A Rocinha fica 24 horas no ‘ar’ e o que a gente precisa tem: lanchonete, bar, farmácia, mercado… Tudo isso funcionando 24 horas”.
Sonhos e realizações
Na terceira idade as pessoas também planejam e realizam sonhos. Lindacy Menezes sabe bem disso. Aos 66 anos, ela está voltando à escola. “Parei de estudar quando era jovem. Depois, aqui na Rocinha, eu voltei, mas por conta de problemas em casa, eu precisei parar novamente. Mas esse ano eu volto”, garante animada.
O retorno aos estudos é mais um capítulo de uma história cheia de reviravoltas. Filha de pais desconhecidos, Lindacy foi criada por uma mãe adotiva no Recife. Tinha apenas 9 anos quando começou a trabalhar como empregada doméstica e o ofício a trouxe para o Rio de Janeiro. Chegou aos 18 anos e aqui conheceu o atual companheiro, com quem está casada há 48 anos. Juntos, foram viver na Rocinha, onde Lindacy criou os três filhos enquanto trabalhava como empregada doméstica.
Moradora da Cachopa, ela conta que a literatura hoje é seu maior prazer, descoberto por acaso. “Vi um anúncio na televisão. A feira literária estava selecionando pessoas que queriam escrever”, lembra. Foram 9 anos participando do grupo de escritores da Feira Literária das Periferias, a FLUP. “Eu comecei a escrever textos, tinha muita facilidade”, destaca Lindacy, que teve vários de seus contos publicados em coletâneas, junto a textos de outros escritores.
“Hoje meu negócio é a literatura, eu fico atrás de evento, de sarau. Isso é o meu lazer”, destaca Lindacy Menezes.
A publicação do livro “Destino Desviado”, em 2022, foi a realização de um sonho que Lindacy sequer havia sonhado. “Eu nunca tive a intenção de um dia ser uma escritora, porque eu nem sabia o que era ser uma”. O desejo em contar a própria história nasceu da esperança de, um dia, conseguir alguma informação sobre a origem dela. “A minha intenção era contar minha história e, de repente, alguém conhecer, saber quem são os meus pais”, ressalta.
Quando a entrevista terminou, Lindacy me entregou um presente. Era um livro. “Aqui você vai conhecer toda a minha história”, afirmou. Perguntei sobre esse ser o grande orgulho dela, que me abriu um grande sorriso. Sem saber mexer no computador, o livro foi todo escrito à mão em um caderno e só depois digitalizado. O processo lembra a história da escritora Maria Carolina de Jesus, que teve o diário “Quarto de Despejo” publicado em 1960.
No caso de Lindacy, a transformação dos escritos dela em livro e, a impressão de algumas edições, só foi possível por conta de um edital. Ela se inscreveu com ajuda de amigos. Quando sai de casa, costuma ter na bolsa alguns exemplares. “Eu quero é distribuir a minha história”, resume.
Participação e desafios
Pouco mais de 67 mil pessoas vivem na Rocinha, segundo o Censo (2022) do IBGE. Por diversos fatores, o levantamento não consegue refletir com exatidão o número e o perfil da população que vive nas favelas. Mas, ainda assim, esse dado ajuda a dimensionar o tamanho da Rocinha. E, a partir disso, a gente se pergunta: qual a participação dos idosos nesse território?
Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), perguntamos à Secretaria Municipal de Saúde do Rio, informações acerca das pessoas com 60 anos ou mais cadastradas nos postos de saúde e clínicas da família, que atendem à área. Com base nesses dados, estima-se que 14.702 idosos vivam na Rocinha, de modo que esse grupo representaria quase 22% da população do território. As mulheres são maioria (8.502) e a diferença entre elas e os homens cresce conforme avança a idade. Entre as pessoas com 90 anos ou mais, o número de mulheres é mais do que o dobro: 269 versus 104.
Para se envelhecer é preciso estar vivo. E, para envelhecer com qualidade de vida, a condição financeira e o acesso a serviços são determinantes. Consultas e tratamentos médicos, hábitos alimentares, saneamento e água, acessibilidade e transporte, além de uma rede familiar estruturada são fatores decisivos para uma pessoa viver melhor e viver mais.
O Mapa da Desigualdade, realizado pela Casa Fluminense, traduz isso em dados. Um dos indicadores compara a idade média ao morrer por município. A pedido do Fala Roça, a Casa Fluminense reduziu o recorte e gerou esse mesmo dado considerando os bairros do Rio. Na Rocinha, a idade média ao morrer é de 58 anos, enquanto em São Conrado, bairro vizinho, 77, uma diferença de 19 anos. Isso significa que mesmo geograficamente próximo, as pessoas vivem, em média, quase duas décadas mais no asfalto de São Conrado.
Vários fatores contribuem para a criação desse abismo, mas a gente sabe que o aspecto econômico é o principal, porque ele delimita o acesso a serviços e determina as condições de vida das pessoas. Por isso, não é coincidência que favelas e periferias tenham uma expectativa de vida menor do que em bairros mais ricos. São as desigualdades sociais e financeiras se materializando, também, na vida e na morte das pessoas.
Segundo a Secretaria Municipal de Assistência Social, por meio da LAI, 3.840 idosos, residentes na Rocinha, estavam cadastrados no Programa Bolsa Família até janeiro. Destes, um a cada quatro declararam uma renda per capita de até R$218.