Creches comunitárias: uma história de resistência feminina dentro da Rocinha
A verba pública é insuficiente para o atendimento de qualidade. As creches conveniadas - a maioria - dependem de parcerias que possam garantir a verba extra para o funcionamento dos espaços.
O movimento das crecheiras, periférico e feminista, teve seu início nos anos 1980, com a crescente necessidade das mães trabalharem fora e com a ausência de creches públicas que fossem capazes de absorver seus filhos no horário de trabalho. A mobilização das mulheres deu origem às creches comunitárias e o período ficou marcado como o movimento das crecheiras. Na Rocinha, também não foi diferente.
Atualmente, 14 creches comunitárias no morro são conveniadas à Secretaria Municipal de Educação e, juntas, atendem mais de 500 crianças. As creches são localizadas em diferentes localidades da Rocinha e somam cerca de R$ 12 milhões em contratos firmados com a Prefeitura do Rio para suprir o déficit educacional na favela, de acordo com dados fornecidos pela Coordenadoria Regional de Educação da prefeitura.
A verba pública é insuficiente para o atendimento de qualidade. As creches conveniadas – a maioria – dependem de parcerias que possam garantir a verba extra para o funcionamento dos espaços.
Do fundo de quintal
Entre essa grande quantidade de iniciativas, cada creche tem sua própria história. Localizada em cima de uma filial da Igreja Assembléia de Deus, a creche da Tia Uega funciona há vinte anos no prédio de cinco andares. O centro educacional foi fundado por Severina Ramos Vieira, 72 anos, líder comunitária, moradora da Rocinha e mãe de oito filhos criados na favela.
A sua paixão pela educação surgiu desde a época em que trabalhava como merendeira e esse sentimento corre no sangue da família. Três de seus filhos já trabalharam na Tia Uega e, desde 2015, sua neta Jéssica Vieira, 26 anos e formada em Pedagogia, coordena a escolinha.
“Minha vó sempre foi uma líder comunitária, ela já dirigiu o Gari Comunitário e participou da Associação de Mulheres. Quando acabou a Associação de Mulheres, lá no Paula Brito, ela teve o desejo de ajudar mais. E aí surgiu a oportunidade dela ter um convênio com a prefeitura. Primeiro, crianças de berçário foram atendidas, e, depois, foi dado prosseguimento com as outras faixas etárias. Então, por criar oito filhos na comunidade da Rocinha, ver as dificuldades das mulheres com as escolas, nasceu no coração dela a vontade de atender crianças também”, conta Jéssica.
A creche do Centro Comunitário União Faz a Força também representa essa luta de décadas. Ela foi fundada por Francisca Elizia de Medeiros Pirozi, conhecida como Dona Eliza, uma das precursoras de movimentos de educação na Rocinha e grande símbolo da comunidade. Originária do Nordeste, ela morou na Rocinha por mais de 50 anos e morreu em 2017, com 77 anos. A professora e líder local também foi além do território da favela e realizou parcerias com o NEAM (Núcleo de Estudos e Ação sobre o Menor) da PUC-Rio.
Marina Moreira, uma das fundadoras do NEAM, conta que a parceria, que durou em torno de 20 anos, foi o que viabilizou o projeto na Rocinha, o qual chegou lá em 1983. “O Reitor na época, que era o Padre Laércio e o Doutor Pelúcio, presidente da Fundação Leonel França, fizeram uma reunião com Dona Eliza e perguntaram o que ela queria da Universidade. E ela disse: ”Tudo. Vocês têm tudo para oferecer e não fazem nada.’ Depois disso, Doutor Pelúcio ficou encarregado de traçar um projeto que envolvesse a universidade em todos os pontos que ela havia citado. Já eu me centrei no projeto e ela aceitou o NEAM, eu coordenando o polo do lado de dentro da PUC e ela condenando do lado de dentro da Rocinha.”
Na creche da Tia Uega, 120 crianças são atendidas em horário integral com o fornecimento de alimentação e higiene completas, além de atividades educacionais e lúdicas. Jeane dos Santos, 26 anos, mãe da aluna Maria Eloah, conta que o ambiente é benéfico não apenas para o próprio dia a dia, mas também para o da sua filha. “Auxilia com muita responsabilidade, com muita competência. Depois que minha filha começou a ficar lá na creche, ela evoluiu muito. Ela aprendeu a fazer o nomezinho dela”, relata a mulher.
Para a manutenção da rotina na escolinha, a administração utiliza o dinheiro obtido da parceria com a prefeitura, que também cobre o pagamento de funcionários e reparos na infraestrutura. Segundo Alexandra Pena, professora do Departamento de Pedagogia da PUC-Rio, toda Educação Infantil é responsabilidade do município, e a verba é recebida per capita, ou seja, por cada criança.
“Hoje em dia, é menos comum a gente encontrar escolas que não tenham esse convênio e isso, de alguma maneira, acaba gerando um compromisso maior com a qualidade desse atendimento. Mas, eu acho que o que mais acaba impactando as creches comunitárias, quando a gente compara com as creches e as pré-escolas públicas, passa pela questão da formação dos professores. Fica mais difícil ter essa fiscalização e esse controle”, ela complementa, “Na Rocinha existe um número grande de creches comunitárias e a gente sabe que isso é muito em função da ausência do Estado, que não oferece uma educação pública para as crianças da Educação Infantil, especialmente para as crianças de zero a três.”
Desafios na educação infantil
Jéssica reconhece que seu tempo estudando pedagogia ajudou bastante na vida profissional, além de trazer novas perspectivas para a sala de aula. “Eu acredito que a formação, não só para mim, para todas as pessoas que buscam mais tanto leitura, quanto informação, é um um ganho. Porque a gente também não pode ficar só com a mente fechada, na verdade tem um mundo inteiro pra gente descobrir que podemos aplicar a nossa formação. Eu acho que, quando há a oportunidade ou senão quando a pessoa realmente quer, uma formação muda bastante e ajuda também na questão do trabalho”, a professora diz.
A creche não é obrigatória no Brasil, mas, apesar disso, faz parte da educação infantil, que é um direito das crianças. Muitas vezes, a criança recebe na creche o que não encontra dentro de casa. Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da educação infantil no Brasil, é previsto que o cuidado é indissociável ao processo educativo.
A pedagoga Alexandra ressaltou a necessidade da valorização da criança no currículo escolar. “A educação infantil tem também um caráter pedagógico. Na educação infantil, temos que compreender que as crianças são sujeitos de direito. Elas são competentes, inteligentes, sabem se expressar, têm desejos, produz cultura, pensam sobre o mundo… O currículo da educação infantil tem que contemplar estes aspectos.”
No projeto do NEAM, Marina reconheceu a importância do direito à educação ao longo do dia a dia na escolinha. “A creche ajudava a convivência. Trabalhava essa questão de quando você não tem pai, não tem mãe, às vezes você só tem a avó. Você lida com isso, lida com alimentação. O que a criança come em casa, às vezes ela não come nada, você tem que saber. Vacina, a gente dava muitas vacinas no posto de saúde. E deixava a família muito participar no que a gente criava”, explica ela.
Esse aspecto de cuidado também é contemplado na visão de Jessica, que vê diariamente a importância de creches que, além de educar, também fazem parte do processo de formação individual de cada criança e seu futuro. “As escolas estão aqui para atender as crianças e as famílias, para dar a educação. Não é só uma cuidadora, a gente aqui também tá para dar amor, carinho, para dar a instrução certa.”
*Conteúdo produzido pelos estudantes Anna Luísa Souza e Carolina Rocha através da parceria do Fala Roça com a disciplina de Jornalismo e Cidadania, ministrada pela professora Lilian Saback, do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio