Governo encerra Comunidade Cidade e Rocinha perde R$ 2 bi em obras

Em 12 meses, foram gastos R$ 18 milhões, ou seja, 0,9% do orçamento de R$ 2 bilhões destinados a Rocinha
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Um pacote de obras para a Rocinha foi anunciado em janeiro de 2020 pelo então governador, Wilson Witzel, que prometeu investir R$ 2 bilhões até 2025 em saneamento básico, mobilidade, habitação, resíduos sólidos e equipamentos urbanos. Nas últimas semanas do ano, a equipe de comunicação do programa Comunidade Cidade foi pega de surpresa por um representante da Secretaria de Estado de Infraestrutura e Obras com a informação de que o programa estava sendo encerrado pelo governo do estado.

Oficialmente, o governo nega o encerramento do programa e diz que “fará uma reavaliação dos próximos passos das intervenções na Rocinha”, disse em nota. E complementam: “Já os programas de habitação e urbanização serão unidos em um grande programa de atenção às comunidades vulneráveis em todo o estado.” No entanto, questionados sobre o novo programa de atenção às comunidades vulneráveis, não obtivemos uma resposta.

Informações apuradas pelo Fala Roça, aponta que a Cedae vai concluir a primeira etapa das obras da Vila Cruzado, no alto da Rocinha e finalizar a recuperação do reservatório do Navio, importante receptor que distribui água para a favela até maio de 2021.

Na Vila Cruzado estão sendo executados o assentamento de 2.572 metros de redes de coleta de esgotos, 1.812 metros de redes de distribuição de água e a posterior melhoria de ruas, becos e escadarias, beneficiando diretamente mais de duas mil pessoas. Foto: Ascom/GovRJ

Witzel disse que só em 2020 seriam investidos R$ 300 milhões, entretanto, em 12 meses, foram gastos R$ 18 milhões, ou seja, 0,9% do orçamento de R$ 2 bilhões destinados a Rocinha cujo projeto de urbanização foi inspirado a partir de um modelo argentino em Buenos Aires.

“Vocês merecem morar numa cidade. Eu assisti obras superfaturadas, assisti a pilhéria contra os cofres do estado… E não podia permitir que isso continuasse. Por isso, a prioridade de levar os serviços básicos para a comunidade”

Wilson Witzel, durante cerimônia de lançamento do programa Comunidade Cidade, em janeiro de 2020, no CIEP 303 Ayrton Senna da Silva, em São Conrado

O cancelamento das obras foi duramente criticado pelo urbanista e arquiteto, Luiz Carlos Toledo, em seu perfil no facebook. “A pequena equipe alocada no programa pela Secretaria Estadual de Infraestrutura e Obras-SEINFRA, formada por assistentes sociais, arquitetos e engenheiros, da qual faço parte, trabalhou arduamente durante quase dois anos, parte deles enfrentando o risco de contrair a COVID19 ao lado dos moradores, desenvolvendo os projetos necessários ao início das obras. Não consigo acreditar que todo esse esforço tenha sido em vão, nem que o entusiasmo e a esperança que percebi nos olhos dos moradores sejam frustrados.”.

Em julho, a Cedae abriu licitação no valor de R$ 29 milhões para a segunda etapa do programa visando implantar um sistema de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem pluvial e pavimentação no Bairro Barcelos, Via Ápia e Caminho do Boiadeiro, ambos na parte baixa da Rocinha. A segunda parte das obras também previa a construção de um tronco coletor de esgoto e do desague da drenagem da Via Ápia. No mesmo mês, a concessionária tornou sem efeito a publicação da licitação, como consta no Diário Oficial do Estado.

Wallace Pereira (de máscara preta) foi até o Palácio Guanabara agradecer pelo retorno das obras na Rocinha. Foto: Ascom/PSC

As obras foram paralisadas no auge da pandemia de covid-19 após o Ministério da Saúde decretar situação de calamidade pública no país, mas foram retomadas no final de julho na Vila Cruzado. Na ocasião, o presidente da Associação de Moradores da Rocinha, Wallace Pereira, agradeceu a retomada das obras durante reunião no Palácio Guanabara com Witzel e outros servidores.

Por 15 dias, o Fala Roça tentou contato com assessores da Cedae, mas não recebemos nenhuma resposta aos pedidos de informações sobre o andamento das obras e o planejamento para 2021.

Enrolados, de novo

Em setembro de 2019, mostramos o primeiro encontro que ocorreu, no Valão, parte baixa da Rocinha, entre representantes do governo, líderes comunitários e moradores sobre a reforma bilionária que incluía obras de de saneamento, mobilidade, habitação, resíduos sólidos e equipamentos urbanos.

Documentos e imagens obtidos no início do ano detalham o plano para a favela que já recebeu diversas obras nas últimas décadas, mas nunca solucionaram os problemas do morro. O caderno de 51 páginas intitulado “Comunidade Cidade – Rocinha em processo”, reúne os projetos e as ações em andamento divididos nos 5 eixos do programa.

Integrantes do governo apresentaram as intervenções que seriam feitas na Rocinha em 5 anos. Foto: Michel Silva

Desenvolvido a partir do Plano Diretor da Rocinha, o programa Comunidade Cidade retoma o antigo sonho de milhares de moradores com propostas nas áreas de saneamento básico, mobilidade, habitação, resíduos sólidos e equipamentos. Mas, segundo moradores da Rocinha, os projetos não foram idealizados com a participação dos moradores em sua maioria.

Privatização da Cedae

Um dos motivos que podem ter levado ao desmantelamento do programa Comunidade Cidade é a concessão dos serviços da Cedae para a iniciativa privada. De acordo com o governo do estado, a privatização da Cedae prevê que a distribuição de água e a coleta e tratamento de esgoto nos municípios do estado sejam passados para a iniciativa privada por um período de 35 anos.

Dentre os investimentos que serão feitos após a concessão dos serviços da Cedae, está a obrigação dos concessionários de investir pelo menos R$ 1,8 bilhão em favelas do Rio de Janeiro. Esse é o programa de atenção às comunidades vulneráveis mencionado pela assessoria do governo no início da reportagem.

Inicialmente, a verba de R$ 2 bilhões para a execução das obras do programa Comunidade Cidade foram divididas entre a Cedae e o Tesouro estadual. Na beira de um colapso nas contas públicas, o governo do Rio conseguiu prorrogar a participação no Regime de Recuperação Fiscal. Sem as obras, os moradores vão continuar enfrentando os mesmos problemas que ocorrem há mais de 50 anos.


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