Iniciativas de reforço escolar aumentam na Rocinha, aponta pesquisa do Fala Roça
Na beira da rampa da Cachopa, no alto da Rocinha, o som do coro de crianças aumenta quando a professora pede que leiam em voz alta algumas letras do alfabeto brasileiro. Na entrada do espaço, uma senhora acompanhada de uma criança com uniforme da rede municipal de ensino param em frente a um quadro branco com informações sobre aulas gratuitas de reforço escolar.
A oferta por essa atividade foi ampliada por diversos projetos sociais na Rocinha, mostram dados produzidos pelo Mapa Cultural da Rocinha, em comparação com os anos anteriores à pandemia de covid-19. O novo mapeamento foi realizado este ano pelo Fala Roça, através do apoio da Prefeitura do Rio de Janeiro, por meio da Secretaria Municipal de Cultura e Fomento à Cultura Carioca (FOCA).
Um dos projetos mapeados, a Associação REF Rocinha, surgiu em 2016 em uma sala na Ação Social Padre Anchieta (ASPA). A iniciativa foi criada pelo morador Gabriel Silva, 25 anos, que desde pequeno ajudava as irmãs a fazerem os deveres de casa. A fama de ‘professor’ percorreu a vizinhança onde morava no morro. Hoje, Gabriel está concluindo os estudos em Pedagogia, na faculdade Estácio.
Dois anos antes da pandemia, o projeto migrou para um espaço na Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem, na Rocinha, onde novas turmas foram criadas. A pandemia de covid-19 trouxe novos desafios para além da educação popular.
“Foi desesperador, a gente continuou tudo online, mas tinha muitas mães me pedindo ajuda com alimentos e eu não tinha nada. Nenhuma cesta básica eu tinha e em 2020 eu estava com 150 pessoas cadastradas no projeto. Comecei a entender que o Instagram é um bom lugar para arrecadar alimentos, material escolar, brinquedos e o que precisar para ajudar as crianças. Com isso divulguei também o meu projeto, a metodologia, ajudar para além do dever de casa da criança.”, lembra Gabriel Silva.
Na Cachopa é impossível não saber quem é o Tio Li. Todos falam com ele. O apelido de Eliezer Oliveira vem do projeto Espaço Futuro das Crianças, criado há 30 anos para atender crianças e jovens da localidade com atividades de informática, leitura, passeios, futebol e reforço escolar. As aulas de reforços escolares do projeto são bastante procuradas pelos moradores porque também o acolhimento vai além da educação.
“Hoje em dia tem aquela visão. A professora hoje numa escola ela não se preocupa mais em falar para você que você é obrigado a aprender comigo. Ela não tem mais essa preocupação porque o próprio governo não quer que ela faça isso. Aprendeu, merendou, amém. Uma criança que vem pra aula de reforço é porque a mãe se preocupa com o ensino dela. Eu tenho uma dupla de irmãos com 14 anos de idade na quinta série sem saber ler. Estão fazendo o reforço escolar e melhorando. Tá aprendendo? Tá aprendendo. Hoje já sabe escrever o nome e outras coisas. Os reforços escolares são como vitaminas e precisamos tomar para o corpo ter força. Às vezes o reforço escolar dentro da favela está ensinando até mais do que a própria escola.”, avalia Tio Li.
Aprendeu, merendou, amém
Foi a neta de Silvia Moreira, 57 anos, que leu as informações no quadro branco para a avó. Aos 9 anos de idade, a menina está na 3° série na Escola Municipal Luiz Delfino, na Gávea. “Quanto mais aprender, melhor. Todo lugar é pago e estou desempregada. O reforço é uma coisa boa. Não dá pra estudar com fome e aqui também dão lanche. Tem até carteirinha.”, explica Silvia Moreira.
As aulas acontecem em uma casa do projeto no Campinho da Cachopa e uma sala na Quadra da Cachopa. 4 professores se dedicam às duas turmas, apesar de não receberem um salário compatível com as aulas particulares que oferecem. “Eu sei que o valor que recebem não é nada, mas quando você tem amor pelo que faz significa mais, o pouco é muito”, conta Eliezer Oliveira que enxerga a humanização e a escuta ativa como ferramenta de inclusão social no ensino.
O Brasil tem notas altas em matéria de fome. A merenda escolar é uma refeição necessária para o desenvolvimento cognitivo. Muitos dos reforços escolares identificados pelo mapeamento feito pelo jornal oferecem algum tipo de alimento, como biscoito e suco. A fome entre crianças de até 10 anos dobrou nos últimos anos — saiu de 9,4%, em 2020, para 18,1%, em 2022.
Fonte: Inquérito da Rede Penssan
Atualmente o REF Rocinha atende 250 crianças na Biblioteca Parque da Rocinha. Muitas vezes são os pais que chegam falando da dificuldade dos filhos, com dificuldades para dar conta dos filhos em casa ou por não saber dar suporte aos estudos dos filhos por ter baixa escolaridade.”Comecei a explicar que não somos esse tipo de reforço, a gente ajuda no dever de casa, mas vamos além disso precisamos entender a dificuldade que a criança tem. Isso através de uma avaliação que a gente faz com cada criança ou adolescnete que nos procuram. Preparamos toda uma aula com pessoas capacitadas para atender aquela pessoa dentro da dificuldade que ela aparece seja com matemática, produção de texto, interpretação e até mesmo alfabetização.”, afirma Gabriel Silva.
Nenhuma criança é aprovada enquanto não aprender o conteúdo necessário para a idade. “Temos até o caso de um aluno de 13 anos que não sabia ler nem reconhecer as vogais, depois de uma atividade de soletração com ele constatei isso juntamente com a coordenadora pedagógica do projeto. Ele estava no 5 ano da escola pública, mas aqui comigo eu voltei lá na alfabetização e no básico do básico para de fato ensinar tudo que ele precisava saber, hoje ele melhorou muito e consegue entender tudo que é passado para ele na escola dentro da série em que ele está e até a autoestima melhorou.”, analisa o educador.
Lei valoriza papel do reforço escolar
Dados da Prova Rio, que mede o nível de conhecimento dos alunos em Matemática e Língua Portuguesa e orienta os professores para que possam corrigir percursos e definir melhor as metas de ensino, fazem parte do retrato do público atendido por muitos projetos de reforços escolares na favela.
Na Rocinha, cinco escolas públicas municipais não conseguem atender centenas de crianças e jovens que são direcionados para outras unidades da rede pública na Gávea e São Conrado.
Na E. M. Francisco de Paula Brito, 71% dos alunos do 3° ano estão abaixo do básico em língua portuguesa. Enquanto 34% dos alunos sabem o básico de matemática. O CIEP Doutor Bento Rubião, uma das escolas mais antigas da Rocinha, 28% dos alunos do 3° ano obtiveram o nível avançado em língua portuguesa. Em matemática, 35% dos alunos estão abaixo do nível básico de desempenho.
Em 2021, o prefeito do Rio Eduardo Paes sancionou a lei do reforço escolar em língua portuguesa e matemática para alunos da rede municipal de ensino. O programa, que será permanente, prevê que o município firme parcerias com a União, governo do Estado, sociedade civil, empresas privadas, cooperativas, associações de moradores, moradores de comunidades comprovadamente capacitados para tal finalidade e demais entidades voltadas à área da educação para o fortalecimento do aprendizado das duas disciplinas.
Os livros e cadernos pedagógicos oferecidos pelo Rioeduca foram enriquecido com fotos e informações, por exemplo, de líderes de projetos sociais e escritores cariocas nascidos em favelas. Estudantes de escolas municipais também ilustram as páginas, numa iniciativa para as crianças se reconhecerem em seus livros.
A pedagoga e pós-graduanda em Psicopedagogia Institucional e Clínica, Marina de Luna, trabalha há 10 anos na área de educação. Para ela, muitas crianças não se desenvolvem porque tem medo de errar.
“Observo crianças que já foram muito corrigidas e tem medo de tentar fazer alguma atividade, alguma proposta e tem medo de errar. Crianças pequenas, principalmente de três a seis anos, já apresentam medo de não acertar. É através do erro e da tentativa que a criança vai se aprimorando. Quando eu vejo que uma criança tem medo de errar, é porque ela está sendo corrigida demais. Ela não está tendo a possibilidade de criar, de inventar, de errar e de se corrigir se percebendo.”, diz Marina de Luna.
Nos finais de ano, Tio Li promove passeios para sítios no interior do estado do Rio de Janeiro. Em finais de semana ensolarados, junta as crianças, aluga um ônibus e passa o dia na praia com direito ao lanche. É o destino mais comum das crianças de baixa renda.
“Levo para fazer uma trilha comigo, para a praia ou museu. A criança se sente valorizada, não é aquela vida de você sair de 6 horas da manhã para a escola merendar, estudar e voltar para a casa.”, finaliza.
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