No mesmo dia em que estava descendo para dar uma palestra no RIO2C, maior evento de criatividade da América Latina, que reúne marcas, empresas, criadores de conteúdo, indústria musical e tecnológica, a CEO da Produtora Favela Content, Kimberly Duarte – mais conhecida como Salemm – foi parada por uma blitz dentro da Rocinha. 

Cria do morro, ela teve naquele instante um encontro com a face mais latente do Estado sob um corpo favelado ao transitar pela cidade: bateu de frente com a desconfiança e o braço armado da Polícia Militar. Mas, ela não se deixou abater. Após ser liberada, seguiu para o evento na Cidade das Artes, localizada na zona oeste do Rio de Janeiro, sendo reconhecimento dos grandes nomes do mercado como a protagonista da palestra “Creators: A nova ID das marcas”.   

A produtora “Favela Content”, criada em 2020,  hoje se refere a uma gama enorme de projetos: produtora, locadora, fotografia, rede de influenciadores e produção de conteúdo. Trata-se da maior produtora de audiovisual e comunidade digital da Rocinha, com uma somatória de mais de 1,5 milhão de seguidores em suas redes sociais como Instagram, Twitter e Facebook

Moradora do Laboriaux, a CEO e produtora Salemm conta hoje com um time de 35 colaboradores na produtora Favela Content, sendo ainda a responsável por movimentar boa parte da economia local da Rocinha, com a gravação de videoclipes, filmagens, locações e ensaios fotográficos para diversos artistas nacionais e internacionais. 

Com as produções da Favela Content, moradores donos de lajes com vista cinematográfica do Rio e da Rocinha, além de donos de restaurantes, produtores, fotógrafos,videomakers e motoristas de caminhões, van e táxi, tornam-se equipe de produções consagradas como o clipe “A Cara do Crime 3”, de MC Poze do Rodo, Bielzin, Felipe Ret e Orochi, com mais de 75 milhões de visualizações. 

Os registros fotográficos são feitos através do trabalho da Fotogracria, principal página de trabalho de Salemm, que foca em produzir conteúdos para as redes sociais e ajudar a investir em jovens da favela. O objetivo é prepará-los para trabalharem no mercado audiovisual.

“Eu sempre quis um nome que fosse fácil de falar pelas pessoas que são crias da Rocinha. Mas, eu já tinha um potencial internacional comigo. Então, quando eu pensei no nome Favela Content foi [para abarcar] e ser o que sou, sabendo que os gringos também entenderiam [trocadilho], sendo ‘wordwide e criawide’ (brincando). Podendo ser o ‘content’ de contente e feliz ou no sentido de contém ou conteúdo”, explica. 

E conclui: “Eu piro um pouco nas criações, mas dá certo, assim como o Fotogracria”. Entre os próximos projetos da produtora, há muitos desejos ainda para serem realizados nos próximos anos. 

“O mundo do audiovisual não é para pobre. Quero muito montar meu estúdio e ter equipamentos próprios com tudo que de fato é preciso. A barreira financeira: de classe e racial, ela sempre é um denominador. Mas, eu estudo e me organizo muito para conseguir me estruturar e dar o melhor para o meu morrão. E tem muita coisa que estou tirando do papel já”, garante Salemm. 

Trajetória

O trabalho com produção audiovisual da marca Favela Content está na pista desde 2020: ano em que a CEO começou a trabalhar com a criação e direção de alguns clipes,  além de publicidades e a concepção visual de produtos. Salemm e a equipe estão por trás do sucesso do grupo UCLAN, das imagens do show da cantora Ludmilla no Rock In Rio 2022

Além do clipe A Cara do Crime 3, que recentemente atingiu a marca de 75 milhões de streaming, onde trabalhou com uma das maiores produtoras nacionais especializada em artistas do rapper e trappe: a Mainstreet Records. A Favela Content é parceira do cenário cultural das favelas cariocas. Sobretudo, na Rocinha, zona sul do Rio de Janeiro. 

“Eu fico muito feliz em poder ver minhas crianças [funcionários] trabalhando e podendo movimentar o morro de forma positiva. Conseguindo colocar vários amigos para trabalhar comigo”, confessa a CEO. “Crianças ou bebês” é a forma que a produtora chama carinhosamente os colaboradores da equipe – que trabalham como microempreendedores através de MEI.

A cria da Rocinha explica que, muitas vezes, corta um dobrado para conseguir equipamentos e mediar o uso de espaços físicos da Rocinha com vizinhos e comerciantes da favela. Afinal, a produção de um clipe gera a interdição de locais, por exemplo. ‘É claro que nada disso é fácil. Mas, quando vejo o resultado e o número nas redes crescendo, eu fico puro orgulho”, relata Salem. 

Para a CEO, produzir audiovisual na favela ainda é um desafio. Seja pelo acesso a bons equipamentos ou conseguir ser valorizado pelo mercado. “Nunca foi fácil. É uma tarefa árdua para a gente que é de favela ter acesso a bons equipamentos, ter nosso trabalho reconhecido e levado a sério. Principalmente, [conseguir o pagamento de] um cachê justo pelo trabalho”, conta. 

Mesmo assim, Salem segue na jornada e enxerga o audiovisual como uma perspectiva para crianças e jovens nas favelas e seu trabalho como uma inspiração para comunidade. “Às vezes deixo as crianças do morro pegar e conhecer alguns equipamentos que uso. Sei o valor de cada coisa que comprei, mas para eles é só a curiosidade e o sonho de fazer aquilo que eu estou fazendo”, aposta.

Futuro na favela

Visionária, a empreendedora do audiovisual, já traça planos para o futuro. Segundo ela, a meta é em cinco anos desempenhar apenas o papel de CEO da marca. Com a produtora bem estruturada e, com ela à frente somente da direção, Sallemm poderá voltar a criar conteúdo artístico próprio. 

“Quero fazer minha exposição de fotografias e outras coisas que, por enquanto, preciso pensar melhor. Não consigo abraçar o mundo, mas só de abraçar a Rocinha já é um salto enorme!”, opina. Apesar de ser reconhecida como uma pioneira do audiovisual na Rocinha, Sallem discorda do rótulo. 

“Às vezes, eu vou em alguns lugares e o povo adora falar que sou pioneira, mas na verdade eu só fiz aquilo que eu sentia. O que meu coração pediu e o que eu consegui organizar melhor. Tem uma galera muito boa aqui no morro capaz de fazer qualquer coisa no audiovisual como o David Souza, por exemplo. Amo os clipes da galera do morro que ele grava! Tem o Gean da 2050 também”, comenta. 

E completa: “Eu ganhei visibilidade porque falo muito nisso. Sou marketeira, tiktok, creator. Mas, não sou uma só. E, enquanto eu puder, vou carregar os meus em tudo”.

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