Cerca de 3,8 mil famílias vivem em condições de extrema pobreza na Rocinha

A prática do fiado em pequenos comércios e a descontinuidade de projetos de distribuição de cestas básicas são vestígios da fome na Rocinha
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Em meio à angústia da insegurança alimentar que assola diversos lares da Rocinha, uma moradora recorre ao grupo de WhatsApp em busca de ajuda. “Alguém sabe de algum lugar que doe cesta básica? Estou inscrita em três lugares e até hoje nada”.

A prática do fiado em pequenos comércios e a continuidade de projetos de distribuição de cestas básicas são vestígios da fome, que resiste ao tempo, e evidenciam a batalha diária de diversas famílias em busca do mínimo: comida para sobreviver.

O relatório do programa Territórios Sociais, divulgado pela Prefeitura do Rio, revelou que 5.328 famílias na Rocinha enfrentam insegurança alimentar. A pesquisa abrangeu cerca de 24 mil moradores. No entanto, devido à densidade populacional, é provável que o número de pessoas em situação de insegurança alimentar seja ainda maior.

Mãe de três filhas nas idades de 3, 10 e 12 anos, a moradora da Rua 1, Luciana Silva*, de 33 anos, relata que o pagamento de aluguel consome R$ 500 do auxílio que recebe do Bolsa Família, no valor de R$ 850. “Minha prioridade é o aluguel, depois a comida, e eu tô falando do grosso: arroz, feijão e farinha”, explica.  

“Neste mês não caiu pensão, nem teve vendas [do crochê], me lasquei e veio a hora do desespero”, lembra ela. Durante o período da tarde, horário em que as crianças estão na escola, a autônoma aproveita para sair e vender produtos artesanais.  “Tem mês que vende e tem mês que não vende nada”, desabafa Luciana.

Distribuição de cestas básicas feita pelo Fala Roça, em 2020, na Rua 2. Foto: Acervo/Fala Roça

A persistência da fome e insegurança alimentar não se deve a um único fator, mas a uma complexa rede de situações cotidianas, incluindo abandono matrimonial e paterno, falta de apoio para cuidados infantis e exclusão de mães pelo mercado de trabalho. Além disso, deficiências nas políticas públicas dificultam o acesso à moradia, saneamento, educação e saúde.

Para a psicóloga Laíza Sardinha, a fome no Brasil tem raízes históricas profundas, relacionadas à escravidão e à violência sistemática contra grupos invisibilizados, como indígenas e negros escravizados. “Determinados grupos estão muito mais expostos a violências. A fome ela não é um acaso, ela não é falta de esforço, ela é e precisa ser compreendida enquanto um projeto político”, denuncia.

Na linha de frente 

Projetos sociais que oferecem cestas básicas ou cartões de alimentação são alternativas vitais para garantir comida nas mesas. Maria Gomes, de 40 anos, colaboradora do Instituto Sempre em Movimento, destaca: “Toda vez que visitamos uma casa carente de comida, eles dizem: ‘Deus enviou vocês!’. São famílias que carecem de assistência social e vivem com insegurança alimentar”.

De acordo com um estudo feito pela organização que deu vale-alimentação de R$120 a R$80 para famílias da Rocinha por 5 meses, muitos idosos e mães solteiras na favela sofrem com a falta de comida. “Mães negras, mães solo com mais de um filho, que pagam aluguel e idosos, são os mais vulneráveis”, explica Maria Gomes.

Fatores que agravam a insegurança alimentar na Rocinha 

Outro dado do relatório do programa Territórios Sociais mostra que 3.861 famílias vivem em extrema pobreza na Rocinha e não eram cadastradas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), o que dificulta o acesso aos benefícios governamentais para pessoas de baixa renda. 

“Esse cartão [de alimentação] me ajuda muito, especialmente agora que minha filha [de 16 anos] está enfrentando um momento difícil com tuberculose”, explica Francisca Silvestre, diarista de 49 anos, moradora da Macega, que vive com o companheiro e mais 4 crianças e é beneficiada pelo Instituto Sempre em Movimento.

Quando os idosos e as mães não conseguem trabalhar, suas famílias ficam em uma situação ainda pior. Eles precisam muito de dinheiro extra e buscam maneiras de consegui-lo. Para as mães, encontrar vagas em creches e escolas é muito difícil. Além disso, o horário limitado desses serviços públicos é mais um problema na luta delas para sobreviver e garantir comida para a família.

“Eu queria muito arrumar um emprego, mas não consigo! Não posso deixar a responsabilidade para a mais velha de ficar com a irmã de 10 anos e a bebê. Onde é que eu vou botar?”, questiona Luciana Silva*.

Para os idosos aposentados, que recebem uma renda de apenas R$1.421, pagar por remédios, aluguel e comida se torna muito difícil. Muitos precisam procurar trabalhos informais, como fazer serviços domésticos ou bicos na Rocinha, como carregar materiais.

“Os idosos vivem com salário mínimo e tem uma vida precarizada porque a maioria do salário fica nos remédios, então, comem salsicha ou outras comidas processadas. Isso não é comida para idoso.”, opina Delma Souza, de 58 anos, moradora da rua 3, massoterapeuta e cuidadora de idosos.

Prato vazio, mente doente 

Quando as famílias enfrentam fome e insegurança alimentar, não é só o corpo que sofre, mas também a mente. Sem ter o suficiente para comer, os adultos da família, geralmente as mães, têm que explicar para as crianças por que não têm comida suficiente e por que estão passando por dificuldades financeiras.

“Elas me pedem as coisas e eu não posso dar. Minha filha mais velha começou a vender sacolé na rua depois da escola pra comprar as coisinhas dela”, conta a Luciana Silva*, de 33 anos. Ela acha que a decisão da filha de trabalhar tão nova, com apenas 12 anos, mostra que a menina já entende que a família está em uma situação difícil. E ela diz: “O pai pega [a filha] quando ele quer e quando o convém. Estou dormindo agora só tomando remédio, antes eu não era assim, mas se não tomar meus remédios, minha cabeça fica a mil”.

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