Entre becos e vielas, os garis comunitários que ajudaram a preservar a memória da Rocinha

'O melhor trabalho que eu tive na minha vida foi ser gari comunitário. Nele, pude ajudar a minha comunidade', conta Alexandre Mendes, o Teco-teco, de 54 anos

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Os garis comunitários não são apenas trabalhadores uniformizados, mas parte do cotidiano das favelas. Conhecidos pelo nome, pelo sorriso e pela presença constante entre os moradores, eles se tornaram um símbolo do compromisso da favela com ela mesma. Nos becos, nas vielas e nos acessos, onde o Estado nunca chega ou sempre chega com atraso, os garis comunitários sempre estiveram presentes.

Desde 23 de junho, o programa Gari Comunitário foi encerrado em todas as favelas do Rio de Janeiro por determinação do Ministério Público do Trabalho (MPT-RJ). Na Rocinha, 36 garis comunitários foram demitidos, deixando para trás uma trajetória de serviço. Dois meses após o fim do programa, o que se percebe não é apenas a falta de limpeza, mas a ausência de figuras que se tornaram parte da identidade local.

Alexandre Mendes, 54 anos, conhecido como Teco-Teco, foi um dos garis comunitários. Foto: David Souza

Além de interromper uma política pública social de base comunitária, o fim do programa também retirou desses homens parte da própria identidade. Para muitos, a profissão não era apenas um trabalho, mas a conexão com o lugar onde vivem e a forma de contribuir ativamente para a melhoria da favela.

Entre tantas histórias marcantes do programa Gari Comunitário na Rocinha, a trajetória de Alexandre Mendes, 54 anos, conhecido como Teco-Teco, revela a força do pertencimento. “Pela nossa comunidade, eu faço tudo!”, garante sem hesitar. Com 29 anos de profissão, ele mudou o rumo da própria vida para integrar o projeto. Em 1996, pediu demissão do trabalho com carteira assinada no antigo Umuarama Gávea Clube (atual Escola André Urani), mesmo sem garantias de que o programa teria continuidade.

“O melhor trabalho que eu tive na minha vida foi ser gari comunitário. Nele pude ajudar a minha comunidade”, afirma Teco-Teco.

Nos dias de chuva forte, quando circular pelo morro se tornava um desafio ainda maior, os garis comunitários eram os primeiros a agir. “Choveu? Já tinha um colega de plantão na Região Administrativa que avisava quando caía uma casa. A gente já ia com enxada, bota e tudo na mão”, conta Alexandre.

Entre becos e vielas, garis comunitários ajudaram a preservar a memória da Rocinha. Foto: David Souza

Engajamento comunitário

O trabalho de gari comunitário vai muito além da limpeza. Em situações de risco, eles eram os primeiros a chegar, abrindo passagem, desentupindo valas e garantindo que os moradores pudessem sair com segurança. Por conhecerem cada canto da Rocinha, os garis alcançavam becos e vielas antes mesmo dos órgãos oficiais, como a Defesa Civil.

Sérgio, 56 anos, dedicou 26 deles ao serviço. Nesse período, a rotina era marcada por tarefas pesadas e essenciais, como entrar nas valas para desentupi-las e assegurar o escoamento da água em dias de chuva. O trabalho era constante na Rua 1, na parte alta da Rocinha, mas também se estendia à parte baixa do morro, onde o volume de resíduos era igualmente grande. Para ele, a ausência dos garis comunitários deixa um vazio emocional, ainda não preenchido, e também um vazio logístico na favela. 

“Os garis da Comlurb não entram na vala como a gente. Eles só tiram o lixo da frente”, afirma.

Robson Silva, 48 anos, começou como gari comunitário em 2002 e não imaginava permanecer tanto tempo na função. Ao longo de duas décadas de trabalho, construiu uma relação de orgulho ao enxergar na profissão o papel de cuidar do próprio lar. “Apesar de trabalhar com lixo, foi um dos melhores trabalhos que eu tive na minha vida”, garante.

A convivência com os moradores e o impacto do serviço são vistos como um ato de respeito e compromisso com a favela. Valdiria dos Santos, 77 anos, é uma das vozes que atestam a importância do trabalho diferenciado dos garis comunitários. Moradora antiga da Rua 1, ela guarda lembranças afetivas dos garis comunitários.

Junto com vizinhos, ela organizava gestos de reconhecimento, como presentes de Natal e homenagens no Dia do Gari, celebrado em 16 de maio, com um café da manhã coletivo. Também recorda como os trabalhadores marcaram a rotina da família, em especial o agora ex-gari comunitário Robson. Todos os dias, no trajeto para a escola, o neto de nove anos o cumprimentava. Com o fim do programa, a criança passou a perguntar à avó: “Cadê meu amigo?”.

Valdiria também questiona o término do programa. “Ninguém sabe o motivo de ter acabado. Deveriam esclarecer para o povo e explicar por que tiraram.”

Por que acabou? 

O Programa Gari Comunitário foi criado em 1998 a partir de uma parceria entre a Prefeitura, por meio da Comlurb, e associações de moradores das favelas. A iniciativa nasceu como solução viável e efetiva para a coleta de lixo domiciliar e a limpeza, idealizada por lideranças comunitárias já em 1995.

Em 2005, o Ministério Público ajuizou ação contra o sistema de contratação, questionando o fato de os garis serem selecionados por associações de moradores, enquanto os salários eram pagos pela Comlurb através de convênio. A tese do MP, acatada pela Justiça Trabalhista, era de que, por ser uma empresa pública, a Comlurb utilizava o programa como forma de burlar a contratação de garis concursados.

Em 2008, a 6ª Inspetoria Geral de Controle Externo do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro (TCMRJ) fiscalizou 107 contratos da Comlurb com associações de moradores de favelas, incluindo a Rocinha. O relatório destacou o impacto social positivo da atividade.

“O gari comunitário mora na própria comunidade e, por ser conhecido pela população local, tem livre trânsito para executar sem maiores riscos as tarefas de coleta e limpeza. Neste sentido, tem ainda a possibilidade de dialogar com seus vizinhos, exercendo ações educativas e preventivas que evitam práticas danosas à limpeza e à saúde da população. Desta forma, são gerados empregos nas comunidades carentes ao mesmo tempo em que se reduz o custo do serviço de limpeza pública”, diz trecho do relatório. 

Em 2010, a Comlurb assinou um acordo parcial com o Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro, comprometendo-se a regularizar a situação dos trabalhadores mantidos irregularmente no programa. Os garis comunitários deveriam ser substituídos por concursados da Companhia Municipal de Limpeza Urbana.

No entanto, o prazo máximo de vigência do acordo expirou sem que a Comlurb cumprisse a sentença, já transitada em última instância na Justiça do Trabalho. A Rocinha é um dos bairros que mais produz lixo na cidade. Segundo a própria empresa, cerca de 140 toneladas de resíduos são coletadas por dia na região.

A ausência dos garis comunitários é sentida não apenas nos resíduos que se acumulam pelos becos, mas também no silêncio que tomou conta de cada canto da Rocinha. Enquanto buscam novas oportunidades, alguns ainda percorrem os becos recolhendo o lixo da forma que podem. Sem uniforme e sem obrigação formal, mas com o mesmo cuidado de sempre.

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