Localizado na zona sul do Rio de Janeiro, São Conrado tem uma vista para a praia e a natureza de tirar o fôlego, além de fácil acesso para todas as partes da cidade. É um dos bairros mais caros da capital carioca. Mas, por trás desse clima bucólico e cinematográfico, há uma história pouco conhecida bem ao lado da Rocinha: a existência de uma casa de tortura no período da ditadura civil-militar do país.

O dia 30 de agosto marca o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados e como desaparecimento não é considerado crime, não há prioridade na maioria das investigações. Diversas organizações de direitos humanos e segurança pública se reúnem e lutam para que a categoria de desaparecimento seja caracterizada e incluída no código penal.

A história da casa de São Conrado é relembrada no momento em que escavações em uma casa na Vila Mariana (SP), em agosto deste ano, vem revelando objetos que remontam ao funcionamento de um dos principais centros de torturas da ditadura militar. No Rio de Janeiro, infelizmente, não há vestígios do local exato de onde ficava a Casa de Tortura de São Conrado. 

As casas clandestinas de torturas na ditadura civil-militar, eram normalmente propriedades privadas, alugadas ou emprestadas por simpatizantes das Forças Armadas, ou ainda, ligadas a dependências de órgãos públicos com desvios de recursos. No período inicial do regime civil-militar, principalmente nos anos de chumbo (1964 – 1974), muitos endereços no Brasil formaram o que se chama hoje de “Mapa da Morte”. 

Com dois andares e um estilo colonial, a residência em São Conrado era dirigida por Cenimar, a antiga Agência de Inteligência da Marinha, localizada em um ponto alto de São Conrado. O espaço era frequentado por aproximadamente 20 agentes, entre os quais estava o ex-comandante Amorim do Vale, além de funcionários do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo, como José Carlos Tralli e Valdemar Brasileiro, de acordo com uma reportagem do UOL.

Segundo o testemunho do jornalista Ottoni Fernandes Júnior, ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), registrado em seu livro “O Baú do Guerrilheiro”, ele relata ter sido detido em 22 de agosto de 1970, na Tijuca, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Ottoni Fernandes alega ter conseguido determinar a sua localização ao perceber o aroma do mar permeando a residência e ao vislumbrar o Hotel Nacional a partir da sua vista.

“O Hotel Nacional era absolutamente identificável. Era uma torre cilíndrica de frente para o mar. Eu estava na encosta oposta à torre, uma encosta em São Conrado, afirmou Fernandes para o UOL, que entrou para a lista das incontáveis vítimas da repressão. 

Localizada em São Conrado, o centro clandestino de tortura eram ligadas ao CENIMAR. Arte: Google Earth

Após três dias de detenção em cárcere privado, com relatos de tortura perpetrada pelas forças militares, ele permaneceu encarcerado por um período de seis anos. Ao ser liberto em 1976, Fernandes empreendeu esforços para rastrear a exata localização da chamada Casa da Tortura de São Conrado. No entanto, seus esforços foram em vão devido à inauguração, já em 1971, do então Túnel Dois Irmãos (atual Zuzu Angel) e acústico Rafael Mascarenhas.

A transformação urbanística alterou completamente a rota de acesso para o bairro, alterando a paisagem e a percepção de espaço. De acordo com Fernandes, a Casa da Tortura de São Conrado foi supostamente demolida pelas autoridades militares como parte de uma tentativa de ocultar os vestígios dos abusos perpetrados durante o período da ditadura civil-militar. 

Esse processo ganhou impulso após a revelação feita por um fuzileiro naval ao jornalista, indicando que o imóvel não estava localizado na Barra, como se acreditava, mas sim numa área de pântano atualmente conhecida como Lagoinha, nas proximidades das primeiras edificações do bairro de São Conrado.

Ditadura civil-militar na Rocinha

Não existem registros conhecidos que indiquem moradores da Rocinha ou de outras favelas tendo sido detidos e submetidos a tortura nas instalações militares de São Conrado. No entanto, nesse período entre as décadas de 1970 e 1980, a Rocinha vivenciou uma mobilização intensa de lutas populares. 

Os moradores realizavam manifestações reivindicando direitos básicos como moradia, água e energia, embora as autoridades militares considerassem esses protestos como um “fantasma do comunismo”. Isso resultou em uma relação que, em parte, vinculava o movimento de base da favela ao contexto político mais amplo.

Antonio de Oliveira Lima, um antigo líder comunitário da Rocinha, se tornou uma das vítimas da repressão civil-militar. Segundo arquivos obtidos pelo Fala Roça, no acervo do Serviço Nacional de Informações (SNI), Oliveira já era considerado subversivo na ditadura civil-militar brasileira. Os militares afirmavam que ele fazia parte do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), organização política de luta armada contra a ditadura. Ele foi perseguido, torturado e quase morto pelos militares na ditadura.

O jornal comunitário pioneiro da Rocinha, O Tagarela, também não escapou dessa fase da ditadura civil-militar. Lançado em 1977, esse meio de comunicação semanal tinha uma tiragem de 2.500 exemplares e empregava estratégias criativas para contornar a censura imposta pelo regime ditatorial.

Seu Oliveira mais jovem em fotos 3×4 já despertava atenção dos agentes da Ditadura no país. Foto: Acervo pessoal/Cris Pessoa

“A Comunicação Popular da Rocinha era feita pelo jornal O Tagarela na época em que o Departamento de Ordem e Política Social (DOPS) ia atrás da galera. Era um jornal que pregava luta. A luta por direitos”, compartilhou Carlos Costa, jornalista e nativo da Rocinha, no livro “Experiências em Comunicação Popular no Rio de Janeiro Ontem e Hoje”, organizado por Claudia Santiago, coordenadora do Núcleo Piratininga de Comunicação.

O período ditatorial foi uma época que lançou sombras sobre inúmeros brasileiros e ainda causa traumas em muitas famílias que foram vítimas da repressão. O relatório conclusivo da Comissão Nacional da Verdade determinou que, durante o regime ditatorial, 434 pessoas perderam a vida ou desapareceram.

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