Livro aborda a vida de travestis na Rocinha
Que tipo de liberdade tem uma pessoa LGBTQIAP+ nas favelas do Brasil? Este é o questionamento que o professor e pós-doutor em antropologia social pela Universidade de Harvard, Moisés Lino e Silva, busca visibilizar ao longo do livro: “Liberalismo Minoritário – Vida Travesti na Favela”. Lançado recentemente pela editora Almedina Brasil, a obra traz um retrato etnográfico queer da favela da Rocinha.
O livro, publicado originalmente em inglês pela Universidade de Chicago, em 2022, é fruto de uma pesquisa imersiva realizada na Rocinha, favela localizada na zona sul do Rio, onde o autor morou entre os anos de 2009 até 2010. O estudo debate como as práticas e os discursos liberalistas – corrente política e moral baseada na liberdade, consentimento dos governados e igualdade perante a lei – se configuram no dia a dia das pessoas LGBTQIAP+ nas favelas.
Isto é: a liberdade de sujeitos privilegiados e titulares de direito, que são geralmente pessoas brancas, adultas e heterossexuais e de classe média, é uma realidade experimentada por minorias marginalizadas no chão das favelas como é a população LGBTQIAP+?
“Eu saí de Goiás e cheguei na Rocinha. Sempre assisti muito pela televisão [imagens do Rio]. Uma amiga minha se casou com um rapaz da Rocinha. Durante meu doutorado, a família dela me recebeu na favela. Nas andanças da vida, na parte do Valão [localidade na parte baixa da Rocinha], encontrei a Natasha, perto de um sacolão, no Boiadeiro. Ela brincou comigo e foi muito interessante conhecer e morar perto dela para entender como é essa liberdade [de ser LGBTQIAP+] dentro da favela”, revela o autor Moisés Lino e Silva.
E completa: “Ela me apresentou outras meninas e isso foi uma base muito rica para minha pesquisa, que logo depois, virou este livro”. Natasha Kellem, Sarita Panisset e Deizzy França são três das muitas travestis homenageadas na obra. São as vivências delas que servem como fio condutor para a contação de histórias e análises do cotidiano no morro.
Ao tornar-se amigo de Natasha, o pesquisador conseguiu entender melhor o modo de vida travesti, o que foi o pontapé inicial das reflexões do livro. Para ele, as travestis são a tradução em carne e osso do conceito de “liberalismo minoritário”, evidenciado por Lino e Silva.
Mas o que é afinal liberalismo minoritário?
No livro, o autor define que o liberalismo normativo promoveu a liberdade de sujeitos privilegiados, titulares de “direitos” (geralmente brancos, adultos, heterossexuais e burgueses), às custas de minorias (crianças, travestis, povos ameríndios, negros e moradores de favela).
O liberalismo minoritário não é simplesmente uma alternativa ao liberalismo normativo, mas algo que emerge “de dentro, contra e para além” da dominação e das possibilidades limitadas (muitas vezes sombrias) que o liberalismo do asfalto oferece à vida das populações de favela.
Apesar de ser uma das principais sujeito político da pesquisa do autor, infelizmente, Natasha não conseguiu se ver eternizada no livro. Ela morreu em 2011, logo após o período da pesquisa. Porém, Lino e Silva dedica a obra para ela e a família.
O bonde
Moisés, que é Professor Adjunto do Departamento de Antropologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), também explica que na Rocinha conheceu um grupo grande de pessoas LGBTQIAP+, que se autodenominava “grupo das novinhas” ou “bonde das novinhas”. “Havia cerca de 30 pessoas. Eram adolescentes, algumas até menores e, o que me deixava impressionado e curioso para pesquisar era: como elas se uniam e andavam pelo morro todo afirmando ser livres”, conta Lino e Silva.
Segundo ele, algumas se declaravam travestis, outras não, “mas havia uma vivência de liberdade na favela, coisa que não acontecia e nem acontece facilmente fora desse território. Elas tinham uma postura muito aberta [na favela] sobre gêneros e sexualidades que até hoje são considerados dissidentes”.
Deizzy França, 30 anos, moradora da localidade do Valão, confessa: “Eu fiquei um pouco assustada quando Moisés [Lino e Silva] falou que estava escrevendo um livro e que nele tinha coisas que a gente vive. Foi uma época ótima e que, infelizmente, não temos mais. Porém, só de saber que temos isso registrado, essas vivências, eu fico muito feliz e louca para ler logo tudo isso no livro”.
Pensando nestas liberdades, muitas vezes a interferência do Estado pode acabar limitando mais do que garantindo os direitos e as liberdades das pessoas que moram nas favelas – especialmente as mais marginalizadas, como as LGBTQIAP+-. Logo após o processo de pesquisa de Lino e Silva, a chegada da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Rocinha, em 2012, tornou cada vez mais difícil o convívio entre os moradores.
“É muito louco pensar que conheci ele e as meninas em 2009. Parece que foi ontem, mas, ao mesmo tempo, é mais louco ainda parar e analisar o quanto de direitos e liberdade na favela a gente perdeu”, opina Sarita Panisset, de 26 anos.
E lamenta: “A geração de hoje em dia é outra. Isso me deixa pensativa, porque é bom ter um livro que não fala apenas dos corpos violentados como sempre fazem por aí. Mas, é um livro de boas memórias… da nossa adolescência… e a agente aprontava muito nessa Rocinha.”
Experiências midiáticas e realidade
Moisés Lino e Silva, 42 anos, um homem gay branco, natural de Goiás, e da classe média, acredita que como ele, a maioria dos brasileiros, não têm conhecimento sobre a realidade das favelas no Rio de Janeiro. “Quando comecei minha pesquisa na Rocinha, tinha um conhecimento ínfimo do cotidiano das favelas. Acredito que o mesmo seja verdade para a maioria dos brasileiros de classe média como eu. Tampouco tinha morado no Rio”, explica.
O goiano conta que, o pouco que sabia sobre favelas, vinha de “experiências midiáticas” consumidas em “notícias ou filmes como Cidade de Deus” que, na opinião dele, “usa uma linguagem documental para retratar a violência extrema com a face ‘verdadeira’ das favelas”.
Ele conta que conseguiu entender nuances sobre as favelas a partir do conhecimento adquirido por meio de leituras a respeito de justiça social, desenvolvimento, liberalismo e estudos urbanos, que fez durante os anos de estudo de antropologia. Mas garante que morar na favela foi o mais importante: “nada havia me preparado para as situações que vivi ao me mudar para a Rocinha”. O desejo do antropólogo é que o sucesso do livro possa servir para que todos conheçam “as moradoras da Rocinha sob uma nova ótica”.
A obra Liberalismo Minoritário mostra como o enfrentamento dos juízos de pobreza e opressão, e os próprios limites da liberdade de um povo marginalizado, reflete a luta por direitos e deveres ainda não avançados dos LGBTQIAP+, mas também de todo morador do chão da favela.