Livro sobre história de moradora da Rocinha criada por prostituta é lançado
“Tá vendo ali? Tudo aquilo é meu”, aponta Lindacy Fidelis da Silva Menezes para uma mesa ocupada por livros e cadernos na sala de sua casa na Cachopa, parte alta da Rocinha. A pernambucana de 64 anos virou escritora há menos de 10 anos. Dentre os livros, ela puxa alguns cadernos escritos à mão para mostrar o que ainda não foi publicado: uma autobiografia.
À primeira vista, a história de Lindacy Menezes parece ser comum a outros milhares de migrantes nordestinos que vieram para o Rio de Janeiro nas décadas passadas em busca de melhores condições de vida. A diferença está em detalhes que ela contará no livro “Destino desviado”, que será publicado em 2022 com recursos do edital de Fomento à Cultura Carioca (FOCA). As escritoras Fernanda Carneiro e Thais Linhares estão auxiliando na produção do livro.
Na sala de casa, a idosa tem um quadro com a foto da jovem Malala Yousafzai, ativista paquistanesa pelos direitos das crianças. Ela foi vítima de um atentado, em 2012, por defender o direito das meninas de irem à escola. Prestes a completar 70 anos de idade, Lindacy Menezes nunca pôde investir na educação. Semianalfabeta, há 9 anos escreve seus textos e poesias, já contribuiu com 5 coletâneas de livros.
No livro, a moradora da Rocinha conta que teve uma infância e adolescência muito difíceis. Quando bebê, foi criada por Severina Fidelis que, na época, trabalhava como prostituta. Não teve a oportunidade de conhecer seus pais biológicos, o que faz com que até hoje tenha muitas perguntas em mente. A mãe de criação morreu em decorrência de doenças psiquiátricas. A sobrinha de Severina Fidelis, Ivonete Fidelis, passou a criar a jovem, em uma favela da Região Metropolitana do Recife, em Pernambuco.
Aos 18 anos de idade, a jovem já era mãe de três filhos. A primeira filha nasceu quando tinha 15 anos. O segundo filho nasceu ao término do relacionamento com o pai da primeira filha. Para complementar a renda em casa, Lindacy precisou trabalhar como babá e faxineira. “Com 14 anos eu comecei a namorar, a virar a cabeça. Aprontei muito. Tinha hora que eu pensava: meu Deus, nunca fui uma pessoa revoltada, mas aquilo me perturbava. Quem sou eu? Quem são meus pais? Sou filha de um estupro? Sou filha de um amor mal entendido? Eu não sei porque eu fui jogada”, questiona.
A mudança para o Rio de Janeiro ocorreu em 1976, após uma mulher endinheirada passar pela região onde morava oferecendo emprego. “Uma mulher muito chique chegou onde eu morava perguntando quem queria ir para o Rio, deixei meu filho com a Ivonete e fui atrás de oportunidades. Um mês depois, cheguei de ônibus na rodoviária e passei a trabalhar em Copacabana para os patrões da mulher que me ofereceu a passagem”, conta. Os patrões estavam de mudança para uma nova casa em Ipanema.
No novo local de trabalho, Lindacy Menezes engatou um namoro com o conterrâneo Francisco Menezes, um dos funcionários do prédio. À moda antiga, ele fez o porteiro entregar um bilhete amoroso a ela. Um dos sonhos da baixinha, como Lindacy também gosta de ser chamada, era ter uma casa própria. Francisco levou-a para conhecer a Rocinha, com cerca de 70 mil habitantes na década de 80.
O destino traçou de Lindacy de encontrar o comerciante e líder comunitário José Inácio de Assis, o Zé do Queijo. O rapaz dizia ser dono de diversos terrenos espalhados pela Cachopa, ali então surgiu a oportunidade da construção de uma casa. “Ele foi lá em cima na Cachopa, não me cobrou nada, mediu o terreno e me deu. Fiquei muito agradecida. Pedi as contas para a patroa e mandei trazer meus filhos de Recife”, lembra.
Monitorado pela Ditadura Civil-Militar, um documento do Serviço Nacional de Informações mostrou que Zé do Queijo cobrava autorizações para construção e obras a partir de uma portaria da antiga Secretaria de Serviços Sociais.
Antes de encerrar a conversa, ela não se contenta e dá mais um spoiler. Nos anos 50, a mãe adotiva, Ivonete Fidelis, trabalhou como servente de limpeza no Real Hospital Português, em Recife. Severina levou a bebê Lindacy até o hospital e pediu para Ivonete ficar com ela até completar 1 ano de idade e devolvesse como se fosse sua filha. Uma cartomante consultada pela escritora confirmou a história contada pela mãe adotiva antes de falecer. “Já contei até demais”, finaliza Lindacy Menezes.