Quando, em 318 a. C., o cônsul romano Appius Claudis Blindus, projetou a Via Ápia de Roma, milhares de anos depois os primeiros moradores da Rocinha batizaram a principal rua da favela como Via Ápia da Rocinha. Ambas ruas são conhecidas pelo histórico comercial e militar. A instalação da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) na Rocinha, em 2012, é o tema central de Via Ápia, o primeiro romance de Geovani Martins.

O livro conta a história de cinco jovens que enfrentam mudanças significativas em suas vidas no morro a partir da invasão pelo Bope, em novembro de 2011. Seguindo a receita de seu primeiro livro, ‘O Sol na Cabeça’, e inspirado em grandes nomes da ficção africana, como Chinua Achebe, Abasse Ndione e Ng?g? wa Thiong’o, o escritor dividiu a trama em três partes.

Após a ocupação em 2011, a dona Marli, mãe dos irmãos Washington e Wesley e os três amigos Douglas, Murilo e Biel criam expectativas com relação à invasão, acompanham a turbulenta instalação da UPP e como a favela foi voltando a uma normalidade com a silenciosa partida da polícia. Geovani Martins alimenta o livro com paixões, amizades, dramas pessoais, ambições, frustrações, sonhos e pesadelos, além de provocar um debate sobre os efeitos perversos da guerra às drogas.

Escritor Geovani Martins segura um exemplar do livro ‘Via Ápia’ na rua que dá nome a obra. Foto: Nina Kopko

“Eu sempre soube que um dia eu ia escrever esse livro e nesse momento eu senti que eu estava preparado.”, conta Martins. “Senti também que o Rio de Janeiro vive um momento assim de absoluto terror em questão de segurança pública. Então todo esse momento ficava voltando muito na minha cabeça a partir dos acontecimentos do agora.”, destaca.

Fala Roça: O seu livro dá uma sensação de que os assuntos são atemporais. As pessoas que vão ler o seu livro, o que você acha que elas podem esperar ao ler e comparar com os tempos atuais?

Geovani Martins: Acho que todo morador de favela, ele cresce com o imaginário da polícia. Esse imaginário geralmente é vinculado a coisas ruins, é vinculada a episódios traumáticos, mas até a UPP a gente não tinha que conviver com a presença da polícia. Tá ligado? A polícia era uma coisa que existia, que rondava ali e a partir da UPP ela se coloca nesse território e a gente está sempre em contato com essa figura que muitas vezes a gente tenta evitar ao longo da vida. Esse livro de alguma forma é para falar sobre esses terrores assim como essa presença pode causar diversas formas de traumas. Além do embate direto, mas as coisas que estão em volta dessa convivência forçada. Tento trazer nesse livro, muitas vezes, essa tensão que é criada pela presença não necessariamente pelo embate. Só o fato de estar rondando ali e saber as expectativas que esses policiais têm sobre os moradores, esse livro fala muito sobre como a UPP, a polícia numa última instância, o Estado consegue ocupar a mente do morador. Vou tentar criar essas tensões a partir de pequenas coisas que mudam no cotidiano deles. O cara começa a ter medo de voltar para casa de madrugada não porque é violento, mas porque ele acha que pode ser abordado. A mãe fala para os meninos que eles podem fumar maconha em casa porque tem medo que eles tomem dura na rua.

Fala Roça: Parece que ao ler algumas páginas do livro, eu senti que eu estou conversando com você. Como foi feita a construção das narrativas?

Geovani: Eu tento trazer o narrador que fale como eu escuto, né? Não com uma voz que está só na minha cabeça, eu tento trazer para o narrador uma voz que ecoa na rua, que ecoa na vida de fato. Porque às vezes alguns narradores, algumas abordagens, elas estão numa tentativa de emular uma voz muito cerebral, uma voz literária. Eu busco o contrário. Eu acho que o texto está sempre atrás da oralidade. Eu acho que o falar é a linguagem oral que as pessoas falam do seu dia a dia, como as pessoas contam histórias do seu dia a dia, isso está na frente do texto pra mim e a minha intenção do texto é sempre conseguir alcançar o máximo possível dessa naturalidade da contação da história. Por isso eu tô sempre nesse esforço de trazer um narrador que pareça real. A coisa do diário nesse livro específico para mim foi importante fazer dessa forma porque esse livro é um outro ponto de vista para esse período. Criar um outro Imaginário e contar essa história a partir de uma outra perspectiva. Colocar datas me ajuda no sentido de entender como funcionam essas narrativas. Ah, esse episódio aconteceu em tal dia e essa é a história da cidade do Rio de Janeiro. Por mais que sejam episódios considerados irrelevantes, nesse livro se tornam as coisas mais importantes daqueles dias.

Fala Roça: A capa do livro é do artista plástico e cria da Rocinha Maxwell Alexandre. Qual é a relação da capa com o livro?

Geovani: O Maxwell é um artista que eu tenho interesse já faz muito tempo. Sempre gostei muito do trabalho dele e tinha expectativa de um dia conseguir fazer um trabalho com ele. Fico feliz de ter conseguido com esse livro que é um livro que se passa praticamente inteiro dentro da Rocinha e ele é um artista também da Rocinha. Essa capa traz essa juventude que está sendo licenciada, na capa a gente vê só os jovens e o ônibus e isso dá uma impressão de que tá contando sobre os personagens do livro e essa galera que tá junto, mas ao mesmo tempo apesar dessa pintura não terem rostos, nos corpos deles você percebe uma certa tensão. É uma tensão que me agrada porque o livro todo ele tá com essa tensão invisível. Quando você vira o livro, você vê na contracapa você percebe que tem dois agentes da polícia em frente a esse ônibus. A pintura toda a gente tá vendo uma juventude tem seu direito ir e vir cerceado, né? A gente lembra muito daqueles daquelas operações na frente da praia onde os ônibus vão sendo parados e as pessoas vão sendo aleatoriamente revistadas e de alguma forma esse livro é sobre isso. A questão do ir e vir. Como isso foi abalado a partir da chegada da UPP. Você como o morador da Rocinha tá acostumado a circular pelo morro, que mora na Cachopa, mas vai na Rua 2 visitar um amigo e etc. Aí de repente você é abordado pelo policial. O policial te pergunta, o que que você tá fazendo ali como se você que mora numa outra área não pudesse circular no próprio morro.

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