Governo vai despejar escola de surfe do Complexo Esportivo da Rocinha

Mais antigo do que o complexo esportivo, a Rocinha Surfe Escola enfrenta um problema jurídico para permanecer no local
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Um projeto social de surfe que beneficia centenas de crianças e jovens da Rocinha e favelas do entorno, terá de desocupar o local que utiliza há 10 anos no Complexo Esportivo da Rocinha porque não possui um documento que comprova a concessão do espaço por parte do governo.

O juiz Andre Pinto, da 16ª Vara de Fazenda Pública do Rio, considerou que a Rocinha Surfe Escola (RSE), criada pelo morador e surfista José Ricardo Ramos não possui “a posse do imóvel e que não comprovou os elementos caracterizadores da proteção possessória”. A decisão também atinge a Casa de Arte da Rocinha, localizada ao lado da escola de surfe. A ação foi movida pelo Estado do Rio de Janeiro, representado pela Procuradoria-Geral do Estado. As duas organizações têm até o dia o próximo dia 29/6 para entregar as chaves. 

Antes da construção do Complexo Esportivo da Rocinha, inaugurado em 2010,  o terreno continha um campo de futebol; um depósito de ferro-velho; um estacionamento; um acesso para a favela da Matinha e a sede da escola de surfe nas margens de um canal de esgoto que vem da Rocinha e é tratado na estação de tratamento de São Conrado.

Com a chegada do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), técnicos do Canteiro Social mapearam e negociaram com os antigos ocupantes  as possibilidades de realocação ou indenizações. José Ricardo Ramos apresentou um relatório feito por gestores no começo das obras do governo. No documento, consta que a RSE “tinha um espaço no local que foi desalojado para a execução da obra, com a promessa de ter um novo espaço disponível.”.

Antes e depois: obras do governo federal repaginou o terreno onde funcionava a escola de surfe que beneficia crianças e jovens há 30 anos. Fotos: Arquivo/Governo Federal

O status da negociação apontou que José Ricardo Ramos aguardava o direito ao local no primeiro andar do complexo esportivo. Segundo a Empresa de Obras Públicas (EMOP), o surfista assinou um termo de compromisso em abril de 2008 e recebeu uma indenização no valor de R$ 9.500,00 para desocupação e liberação da área onde estava localizada a antiga sede de surfe. Na época, 253 moradores também receberam indenizações por causa das obras do governo federal na Rocinha. 

“A EMOP me deu um cheque de cerca de 9 mil reais e disse que estavam pagando pelo terreno, mas depois íamos ter uma loja bacana de frente para a rua. Eu peguei e aluguei um apartamento em cima do No Limite [loja em um dos acesso a Rocinha] e transferi a escola de surfe para lá enquanto as obras aconteciam. Eu paguei o aluguel adiantado por 1 ano com tudo registrado no cartório”, lembra Bocão, como é conhecido na Rocinha.

Briga antiga sem diálogo

Entre 2009 e 2010, um memorando foi criado para formalizar a Secretaria de Turismo, Esporte e Lazer (Setel) como responsável pelo espaço que, em seguida, passou o controle para a Superintendência de Desportos do Estado do Rio de Janeiro (SUDERJ).

O pesadelo começou quando o suposto documento de cessão do local nunca chegou às mãos do surfista. “Eu fiquei 8 anos indo na EMOP para tentar resolver a questão da cessão de uso do espaço”, explica. Segundo ele, o documento foi feito pelo assistente da Diretoria de Planejamento e Projetos da EMOP, Adilson Torres, nomeado em 2008 para o cargo. Mas a pasta com documentos desapareceu com as sucessivas trocas de administradores do complexo esportivo.

As ameaças de despejos são antigas. O espaço da escola de surfe seria ocupado pelo banco Itaú, que encerrou a agência no interior da Rocinha em 2017. Em nota, o Itaú negou o interesse no local.

A SUDERJ faz parte da Secretaria de Estado de Esporte, Lazer e Juventude (SEELJE), entretanto, atua de forma independente. Ambas as pastas reafirmam a condição do Estado como legítimo proprietário e que “o uso do espaço público no complexo esportivo pela escola de surfe e a loja já foi reconhecido pela Justiça como irregular” sem qualquer espécie de formalização jurídica.

Em outubro de 2017, a Rocinha Surfe Escola já tinha recebido uma notificação extrajudicial da SUDERJ para desocupar o espaço, porém não foi cumprida pela escola. “Foi encaminhado à Procuradoria Geral do Estado, que ajuizou a competente Ação de Reintegração de Posse com sentença favorável para desocupação do imóvel e restituição ao seu legítimo titular”, concluíram os representantes do governo.

Atualmente, Marco Antonio Costa de Oliveira é o administrador do complexo esportivo. Ele também já foi administrador regional da Rocinha.

Esporte olímpico sem casa

O surfe está programado para ter sua estreia nos Jogos Olímpicos em Tóquio, no Japão, este ano. Gabriel Medina, Italo Ferreira, Tatiana Weston-Webb e Silvana Lima participarão de um momento histórico representando o Brasil no esporte.

Na Rocinha, o despejo da escola de surfe vai na contramão do momento olímpico. A escola mantida por Bocão oferece treinamento e formação de atletas profissionais a 48 alunos por ano. Além do surfe, outras atividades acontecem no espaço como aula de inglês, escalada, além dos eventos criados pelos moradores. O projeto também mantém um sistema de reaproveitamento de pranchas no qual já restauraram 340 pranchas que tinham o lixo como destino. 

“É um espaço multiuso. É um espaço da comunidade e não meu”, desabafa Bocão que perdeu possíveis patrocinadores por falta do documento que atesta o uso do espaço.

O surfista Gabriel Popó, cria da Rocinha, observa Ricardo Ramos durante um restauro de prancha na entrada da escola de surfe. Foto: Giullio Paletta

A escola de surfe pretende recorrer da decisão do Tribunal de Justiça do Rio, pois o projeto cumpre a função social mesmo sem o documento definitivo de cessão de uso do espaço. 

“A Rocinha vai perder muito porque a escola é uma referência. Uma das únicas ações socioeducativas que ficou para a Rocinha através das obras do PAC”, lamenta.

Recuperando-se de um AVC (acidente vascular cerebral), o artesão José Luiz Summer, responsável pela Casa de Arte da Rocinha, não pretende recorrer da decisão da Justiça porque “ordem oficial não se discute, se cumpre” embora tenha em mãos uma cópia que comprova a entrega do espaço na época de inauguração do complexo esportivo. “Tudo simplesmente acompanhado pela equipe do PAC, com a presença de governantes e secretários. Essa desocupação é uma questão política, não jurídica”, ele denuncia.

Mesmo assim, Zé Luiz coloca a vida em primeiro lugar e afirma que não pode surtar, nem se estressar, para não piorar as sequelas da doença. “Vou recomeçar do zero como sempre fiz. Já comecei com uma nova turma no curso de modelos e também faremos o filme baseado no livro ‘Sorria você está na Rocinha’, do escritor pernambucano Júlio Ludemir”.


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