“O sonho que tomou forma”. É assim que o grupo fundador apresentou o Fala Roça em sua primeira edição impressa. O lançamento aconteceu na Biblioteca Parque da Rocinha, no dia 25 de maio de 2013. Para contar a história do jornal, no entanto, é preciso voltar um pouco mais no tempo. 

Na primeira década dos anos 2000, era comum a entrega de jornais por assinatura, especialmente nos bairros mais ricos. Lidos ou não, muitos acabavam descartados em algum canto. No final do dia, o pai de Michel Silva, que trabalhava em um condomínio em São Conrado, levava alguns jornais para a casa. O contato com essas notícias foi um despertar. 

“Como só tinha notícia ruim sobre a Rocinha se eu tive uma infância tão legal, se conheci pessoas maravilhosas?”, questiona Michel Silva. “Aquilo foi me incomodando”. 

Do incômodo surgiu a ideia e um convite para a irmã, Michele Silva. “Contei sobre o desejo de criar um veículo de informação que pudesse divulgar oportunidades, contar histórias de moradores e trazer boas notícias sobre a Rocinha”. Juntos, deram início ao blog Viva Rocinha, no final de 2011. Naquele período, os holofotes da imprensa estavam voltados à favela por conta da chegada do programa: Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). “O morador está acostumado a ver notícias sobre seu território quando tem operação ou tem alguém morto, [mas] a gente queria levar outras coisas”, resume Michele. 

Através do blog Viva Rocinha, eles começaram a contar histórias de projetos sociais, perfis de personagens conhecidos da Rocinha e também informações de interesse público. A recepção foi positiva, mas naquela época, o acesso à internet não era tão comum e isso era uma barreira para que as notícias do blog sobre a Rocinha chegassem, de fato, aos moradores. A saída para driblar a desconexão era criar um jornal impresso. 

Nasce um jornal

Com a instalação da UPP, alguns programas sociais começaram a chegar na Rocinha. A Agência de Redes para Juventude era um deles. Sua missão era apoiar jovens no desenvolvimento de projetos de impacto na comunidade. Além da formação, os selecionados receberiam um investimento para viabilizar a ideia. Essa era a chance de transformar sonho em jornal impresso. 

Michel foi um dos selecionados. Durante o programa, outros jovens foram embarcando no projeto. Além dos irmãos, a primeira equipe do Fala Roça era composta por outros quatro moradores da Rocinha. Do grupo de seis pessoas, quase todos tinham entre 17 e 18 anos. 

Trio que coordenou o Fala Roça em anos anteriores: Beatriz Calado (esquerda), Michel Silva (centro) e Michele Silva (direita). Foto: Kita Pedroza

“Eu aprendi jornalismo dentro do jornal”, avalia Michel, que entrou na faculdade de jornalismo em 2014. A experiência também foi determinante para a escolha de Gracilene Firmino, que ingressou no curso de comunicação no mesmo ano. Ela ficou na equipe por cerca de um ano. Sua saída diz muito sobre os desafios de sobrevivência compartilhados pelos jornais comunitários. “Eu amava o projeto. Sai por questão de dinheiro mesmo. A pressão para ajudar financeiramente em casa é muito grande para quem é da favela. Saí para trabalhar”.

Depois do lançamento do jornal, a equipe foi, aos pouquinhos, encolhendo. O jornal não tinha recurso para remunerar ninguém e, por isso, muitos foram saindo do jornal em busca de trabalho. “A gente ficou muitos anos sem ganhar nada! Em um momento ou outro, pingava uma grana para rodar o jornal”, explica Michel. Entre 2013 e 2017, foram oito edições do impresso. Depois de uma grande pausa, ele retornou em 2020 e, após quatro novas edições, parou outra vez em 2021. 

Uma história de insistência

Por muitos anos, o Fala Roça foi mantido como um projeto paralelo, um trabalho realizado no tempo livre. “A gente passou por momentos delicados, sem grana, sem equipe. Não tínhamos sede, fazíamos reuniões em casa e em lanchonetes pela Rocinha”, lembra Michel. A história do jornal é uma ação de insistência. Sem dinheiro para rodar o impresso, o grupo seguiu publicando as matérias no site. Em 10 anos, o Fala Roça contou centenas de histórias. 

O jeito de fazer jornalismo do Fala Roça foi descrito em livros, contado por pesquisadores em teses de doutorado, referenciado em palestras e cursos, e reconhecido com vários prêmios. No entanto, mesmo ocupando novos espaços, sua sobrevivência continuava em risco. 

O ponto de virada aconteceu na pandemia. Com apoio de uma instituição externa, o jornal foi responsável pela doação de cestas básicas na Rocinha. “A gente conseguiu mobilizar, comida, água, material de limpeza e higiene pessoal para milhares de famílias por meses e meses. Uma logística absurda [com] entrega de materiais em lugares onde não chega carro e, às vezes, nem moto. Só chega a pé”, ressalta Michele. 

“Quando esse momento passou, a instituição entendeu que projetos como o Fala Roça desempenham um papel importante em seu território e renovou o apoio. Dessa vez, focado no nosso fazer principal, o jornalismo”, complementa Michel. Pela primeira vez, depois de quase uma década, o Fala Roça passou a ter um espaço próprio e uma pequena equipe, que tem o jornal como seu trabalho principal.

Reconhecimento 

“A entrega do jornal é a materialização do nosso trabalho”, resume Beatriz Callado. Cria da Rocinha, ela se tornou jornalista dentro do Fala Roça. Dos seis anos em que esteve no jornal, destaca com carinho os momentos de distribuição do impresso. “Tínhamos contato com os moradores, caminhávamos a pé por toda a Rocinha e ouvíamos histórias de pessoas que depois viravam pautas”, lembra. 

Para Claudia Santiago, o jornal comunitário cumpre um papel importante ao contar sobre a vida cotidiana, as conquistas e os sonhos de lugares geralmente reduzidos à violência. “Se não for através da comunicação popular, como as pessoas em São Conrado vão saber o que é a Rocinha? Se atravessar o túnel então…”. A jornalista conheceu a equipe durante a pesquisa para o livro ‘Experiências em Comunicação Popular no Rio de Janeiro ontem e hoje’, em 2015.  

A desigualdade que organiza a sociedade também se faz presente no jornalismo. A jornalista Cecília Oliveira resume isso: “a gente escreve sobre o que a gente vê, vive e se importa”. Especialista em Segurança Pública, Cecília é fundadora do Instituto Fogo Cruzado. Conhece, de perto, o trabalho de jornais e jornalistas comunitários. Ela ressalta o papel decisivo dessas iniciativas “para a disseminação de uma visão menos estereotipada das periferias, para a denúncia da violência policial e da ausência de políticas públicas”. 

Moradores reunidos na sede do Fala Roça na produção do Mapa Cultural da Rocinha. Acervo: Fala Roça

Como exemplo disso, ela lembra o escândalo revelado pelo Fala Roça, que noticiou, em primeira mão, a instalação de um tomógrafo na Igreja Universal durante a gestão de Marcelo Crivella na Prefeitura do Rio. “Essa matéria ganhou todas as manchetes depois – inclusive, sem o devido crédito. Mais um problema da dita grande imprensa: não reconhecer o trabalho de jornais menores, locais”, observa.

Na visão dos comunicadores ouvidos, a repercussão de matérias como essa demonstram a força do jornalismo comunitário, que traz impactos reais na vida dos moradores. Como é o caso do Mapeamento Cultural da Rocinha, um levantamento feito pelo Jornal Fala Roça, que mapeou  150 iniciativas culturais existentes na Rocinha, gerando visibilidade para as organizações locais. 

Mas os impactos ainda, também podem ser simbólicos, como sugere Beatriz: “o maior legado do Fala Roça para mim é o quanto fazer parte disso aumentou meu orgulho em ser da Rocinha”.

Em 10 anos, muitas histórias foram contadas e outras ainda estão por vir. O sonho tomou forma e está longe do fim. 

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