O perfil religioso da Rocinha é extremamente diverso, sendo possível encontrar católicos, evangélicos, espíritas, candomblecistas, umbandistas e budistas pela favela. Em certos casos, mais de uma religião compõe a fé de uma mesma pessoa. O papel da religiosidade na favela vai além da função espiritual, os templos ocupam também lugares esquecidos pelo Estado.

Estudos do lpsos (instituto de pesquisa) apontam que no Brasil 89% da população acreditam em Deus ou em um poder maior, na favela esta crença está ligada diretamente à organização social e ao posicionamento em meio a desigualdade.

A Casa Maria de Nazaré atuou pela primeira vez na Rocinha em 1962 ao levar auxílio médico para uma mulher com depressão, em contraposição ao primeiro posto de saúde criado no local apenas em 1982. Atualmente, aos sábados há uma reunião com palestras, seguida pelo passe espiritual.

Segundo a atual presidente Maria Regina de Agostini, 74, que frequenta a Casa desde 1984, muitos procuram o centro em busca de ajuda material e permanecem pela necessidade espiritual. Entre os funcionários e voluntários está José Chaves de Araújo, 66, morador da comunidade e responsável pelas reformas feitas pelo grupo. Ele reconhece o trabalho realizado pela Casa na vida dos moradores.

“Eu entrei aqui para fazer a manutenção do Centro, hoje já é difícil dizer o que não faço. Já me emocionei muito, uma vez fiz o banheiro da residência de uma senhora que chorou no dia da entrega. Ela nunca tinha usado uma privada que não fosse à casa da madame, isso me marcou muito. Estou há 22 anos aqui, entrei por questões financeiras e fiquei porque gostei e sei que as pessoas valem a pena.”, conta José Chaves.

Moradores participam de encontro budita no alto da Rocinha. Foto: Aline Campos

Casa Maria de Nazaré atende a 400 famílias em dois pontos na Rua Um: um mais ao alto e outro mais abaixo do morro, é dedicado aos idosos e pessoas com pouca mobilidade. Moradora da Rocinha, Maria de Jesus, 67, acompanha as reuniões da Casa há 39 anos. Católica devota, se sente acolhida pelo espiritismo e guarda com grande carinho a assistência que recebe mensalmente. Quando mais jovem trabalhou no centro.

“Frequento desde que me mudei para cá, foi a Casa que me ajudou a encontrar um lugarzinho para morar. Sou católica e me sinto bem nas reuniões espíritas também, é uma benção ter sido acolhida aqui. Para quem tem mais de 60 anos, eles dão leite, é algo caro e faz muito bem para nós, sinto muita gratidão.”, explica Maria de Jesus.

A diversidade da comunidade faz com que seja possível encontrar seguidores de uma vertente budista surgida no Japão do século XIII, presente no Brasil há 63 anos. Myrian Cristóvão, 44, é secretária em Paquetá e estuda direito na Universidade Estácio de Sá. Há 11 anos, se converteu ao budismo Nichiren Daishonin, que conheceu fora da Rocinha e ficou impressionada ao saber que havia devotos dele na favela. Segundo ela, esta religião busca a transformação da vida e a prática de desenvolver o bem.

Criada em uma família do candomblé, Myrian foi batizada na igreja católica e fez a primeira comunhão. Ela sentia que o catolicismo não preenchia mais as lacunas que possuía sobre questões da vida. A estudante explica que o budismo que pratica não tem um templo fixo, pois a crença se baseia na filosofia humanista, que considera as pessoas independentes do local em que moram. Os encontros ocorrem na casa dos participantes que discutem sobre desafios cotidianos e se organizam em ações que atendem a crianças e adolescentes da favela.

“A gente procura organizar atividades para os jovens daqui, que são cheios de potencial e por vezes têm dificuldade em enxergar isso. Procuramos mostrar perspectivas para eles, encaminhar e auxiliar nessa caminhada.”.

Michelle Lacerda, 33, é umbandista e conta que usa a força da fé para ajudar os mais novos e ensinar a importância da ancestralidade, pilar da religião de matriz africana. Criada num terreiro, ela frequentou um centro espírita por 12 anos, completou a primeira comunhão e participou de um grupo de jovens católicos, hoje é dona do templo de umbanda que herdou das mães Nicinha e Jurema. A manifestação da fé para ela nem sempre foi fácil, na adolescência quando começou a andar de turbante e colares guias sofreu preconceito de pessoas que afirmavam ser “coisa do demônio”.

A liberdade na expressão da fé é algo essencial para Michelle, enquanto o filho menor de sete anos participa ativamente dos encontros, o mais velho de 15 não pretende frequentar as reuniões e apresenta resistência ao assunto. A maioria dos participantes do terreiro são jovens que aprendem com os “pretos velhos” e participam de atividades como do grupo de teatro e do cineclube. Ela afirma que a maioria dos devotos frequenta a igreja e também a macumba. Além da inclusão, o local também promove assistência e durante a pandemia ofereceu entregas de cestas básicas e quentinhas.

Mesmo com toda multiplicidade religiosa, a maioria da população brasileira segue sendo católica. Maria da Paz, 60, chegou na Rocinha em 1972, ano em que começou a frequentar a Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem. A paraibana migrou para o Rio de Janeiro aos 11 anos e construiu família na comunidade, afirma que nem todos praticam a mesma fé e a liberdade religiosa é expressa no núcleo.

“Somos uma família de origem católica, porém após adultos alguns familiares migraram para o espiritismo ou evangelismo. Isso não abalou o amor e respeito entre nós. Na Rocinha as pessoas conseguem demonstrar sua fé, existem preconceitos e estigmas, já participei de manifestações contra a intolerância, liberdade é também uma conquista.”, diz Maria da Paz.

Igreja Universal em um dos acessos à Rocinha. Foto: Acervo/Fala Roça

Pedagoga, formada pela UERJ, Maria destaca a proposta religiosa em favelas. Para ela, a diferença de necessidades reflete na ação da igreja e das pessoas que a frequentam. Há a promoção de encontros para discutir as carências e posicionamentos da população local que dão vida a projetos como grupos para a terceira idade e alcoólicos anônimos.

“Frequento a única Paróquia da Zona Sul que fica em uma favela, por atender a uma população carente de serviços e demandas, agimos muito na assistência. Sou agente social e trabalho na região que cerca a Rocinha e com isso vejo diariamente a diferença das igrejas dentro e fora dela.”.

Nos últimos anos a igreja evangélica passou por um crescimento exponencial na Rocinha, foram registrados 40 templos evangélicos em comparação a sete católicos. Laiza Gomes, 64, é pastora da Igreja Metodista da comunidade e ressalta o papel da instituição para além dos cultos. Entre as ações sociais promovidas, estão as aulas de costura que têm como intuito oferecer uma fonte de renda para as mulheres. A teóloga, acredita na importância de estimular conhecimentos que empoderem os moradores das favelas.

Apesar de não ser originária da Rocinha, Laiza afirma que mesmo com o alto número de habitantes, as pessoas continuam receptivas e acolhedoras. A pastora ressalta a liberdade religiosa na comunidade e a enxerga na própria família. Para ela, as diferentes igrejas expressam a fé e o amor de formas distintas, mas com o mesmo intuito e legitimidade.

“Nasci em um lar evangélico, mas todos de igrejas diferentes, fui batizada em uma igreja que não era a dos meus pais. Meus filhos foram batizados em um templo que não é o meu, eles não frequentam assiduamente os cultos. Acho que o ritmo acelerado da vida causa esse distanciamento, mas existem várias formas de expressar a fé, as igrejas na Rocinha são várias portas abertas.”, finaliza.

*Reportagem produzida através da disciplina Jornalismo e Cidadania, ministrada pela professora Lilian Saback por meio de extensão universitária do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio.

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