O Grammy Latino anunciou em transmissão ao vivo nas redes sociais os indicados de 2023. Com 56 categorias, a premiação conta com um cria da Rocinha indicado na categoria ‘Melhor Vídeo Musical Versão Curta’, com o videoclipe Fixação, do EP ‘O Que É O Amor’, do músico Luthuly, de 29 anos. 

“Quando recebi a notícia que fui indicado ao Grammy, chorei bastante. Estou muito feliz porque vejo que meu trabalho foi reconhecido e, vejo que muitas pessoas que não conheciam minhas obras, estão me conhecendo agora.” afirma o cantor nascido e criado na Rua 2, na parte alta da Morro, em entrevista exclusiva para o Fala Roça. 

O primeiro artista da Rocinha a ser indicado ao prêmio – que anunciou a lista dos indicados em 19 de setembro – concorre nessa categoria com nomes como: Kayode, Nathy Peluso, Sen Senra e Wos. Esta será a 24ª edição do Grammy Latino e acontecerá no dia 16 de novembro, em Sevilha, na Espanha.

Compositor, produtor, musicista e instrumentista, além de cantor, Luthuly começou a carreira solo em 2018 e integra o time de artistas no Slap, selo musical da Som Livre. Inclusive, estampou a capa da playlist ‘Suíte’ do Spotify Brasil e já se apresentou em festivais, eventos e fez diversos shows pela capital carioca. 

Antes da carreira solo, fez parte da banda Sinara como vocalista ao lado de Magno Brito, Francisco Gil, João Gil e José Gil. Eles chegaram a se apresentar no Rock In Rio 2017 com o cantor baiano Mateus Aleluia.

Dos becos para os palcos

Filho de Mauricio Soca Fagundes, mais conhecido como Soca da Rua 1, Luthuly Ayodele sempre foi atravessado pela arte por influência da família. Quem passava pelos becos da Rua 1 e da Rua 2 nos anos 2000, encontrava já o menino de cabelo afro tocando, dançando ou cantando por ali. “Bonde da arte de rua” expressa o artista na faixa Rua 1, Rua 2 do álbum Pele, nesse trecho ele relembra os momentos de infância com os primos.

“Sempre tive muita conexão, vivência e amor com o lugar artístico e musical. Quando era pequeno fazia uma brincadeira: filtrava os talentos dos meus parentes, e juntos, fazíamos releituras de funks que eram populares na nossa época. Todo mundo aprendia a cantar nessa brincadeira”, conta Luthuly.

Artista mistura R&B e afrobeat em canções. Fotos: Wendy Andrade

E completa: ‘Isso já era um lugar que me trazia referência e movimento pra mim. Eu fui me conhecendo melhor, entendendo minha trajetória, de infância até hoje e, incluindo essas histórias até esse meu momento na carreira solo de maneira rítmica”, ressalta o cantor. 

Ex-aluno da Escola Parque, localizada na Gávea, Luthuly tem sua história marcada na pele pela desigualdade e diferença cultural e social como aluno da instituição, que comporta grande parte da classe média carioca da zona sul. O choque de realidades fez que o cria da Rocinha encontrasse nesta vivência uma alternativa para criar o repertório.

“Viver dentro de mundos, de uma galera que é muito rica e muito pobre, com outras visões, balança a mente. Mas, isso enche a ‘bagagem’. É uma introdução na vida muito grande e isso cria repertório”, garante o músico.

E conclui: “Por isso, compor sobre a vida [para mim] é fácil pra mim, porque eu já vivi vários momentos e [em vários] lugares. Das salas de aulas privilegiadas às vivências de beco, soltar pipa e brincadeiras nos becos. Esses dois mundos estão dentro de mim e se misturam”. 

“É sobre entender a minha potência”

O indicado ao Grammy Latino 2023, Luthuly Ayodele tem uma obra que mistura gêneros musicais e ritmos como: R&B, beats gringos, samba, eletrônica, afrobeats, house, rap e funk. Produz um tem um repertório musical que se diferencia do comum e chama atenção por sair da fórmula musical batida atualmente feita para viralizar. 

“Muita gente ainda não entende o que eu faço. As pessoas se identificam com o que é comum, com o que é de fácil entendimento. A realidade que tenho não é uma realidade comum. É muito complexo para essas pessoas que consomem o comum quando me veem fazendo funk, samba, rap, house com legitimidade”, avalia o cria da Rocinha.

“Não é arrogância minha [falar sobre isso], longe disso. É sobre entender minha potência. Sei o que sou e do que sou capaz. Quero que a favela também compreenda isso! [É] sobre sermos capazes e entendermos essa capacidade”. 

Representante da black music brasileira, Ayodele relembra as dificuldades que passou – e ainda passa hoje em dia – para alcançar metas e andar pelos lugares que desejava ao tentar furar a bolha dentro da favela e no asfalto. Como sempre transitou entre esses dois mundos, o artista era taxado no morro como “playboy” e, fora da favela, sentia a dor do racismo, exclusão e solidão. 

A intensidade dessa dinâmica de resiliência não deixou Luthuly abandonar as origens, personalidade e potencialidade. “Esse lugar do não entendimento diante dessas dificuldades e vivências diferentes faz com que eu esteja aberto às descobertas. Eu acho que traumas e o autoconhecimento andam juntos e podem trazer resultados positivos. Precisamos conversar sobre nossos traumas e não ignorá-los, mas lembrar de uma maneira [que não seja] dolorosa. Hoje consigo vivenciar isso e está sendo maravilhoso”, desabafa. 

Para o músico, o território favelado é complexo e passa por muitos problemas como um todo. Por isso, não se pode dizer que uma vitória individual significa a vitória da favela. “A favela não venceu e isso é um fato. Enquanto nosso povo estiver vivendo com a falta de saneamento básico, educação precária, estrutura de moradias inseguras, saúde pública sem funcionar e transporte público de má qualidade, não vencemos. Isso é um discurso medíocre quando a gente vê a realidade dos nossos”, opina o cria. 

Próximos passos

Segundo o jovem artista da Rocinha, os novos projetos musicais têm uma diversidade sonora única que ele nunca havia feito. Terá a presença política, amorosa e do cotidiano nas composições, mas também trará um toque mais leve, espiritual e humano em conexão com o nome do cantor. 

Luthuly significa poeira, transformação e Ayodele alegria do lar. A faixa intitulada de ‘Ayodele’, do próximo álbum – projeto que ainda não foi divulgado – navega sobre o sentimento de potência enquanto ser humano, mesclando uma variedade de ritmos musicais.

“Eu trago um lugar político no próximo álbum, mas de maneira bem mais leve. Rua 1, Rua 2, do álbum anterior, fala sobre a minha realidade dentro do lugar onde cresci, aprendi e me ensinou. Agora, estou trazendo um outro lugar [dentro de mim] para não ficar preso só ao nosso ambiente de conforto.  A música Ayodele do próximo álbum diz sobre espiritualidade, sobre se sentir potente como ser humano, e tenho certeza que a favela vai se identificar. Vai ser incrível!”, revela o artista.

O músico, com nome inspirado no primeiro negro a ganhar o Nobel da Paz em 1961, Albert Luthuli, listou as metas que deseja conquistar nos próximos anos: “Daqui há cinco anos quero ter feito uma novela, uma série, ganhado um Grammy, ser reconhecido como um compositor nacional importante, quitar a casa da minha mãe e comprar a minha. Esses são meus sonhos”, conta. 

Luthuly Ayodele começou a vida artística desde cedo e transformou a trajetória – que ele constrói até hoje – em carreira musical. Para ele, produzir um som a partir da cultura favelada existente e resistente, que domina as ruas, becos e vielas da Rocinha, é dar palco  à cultura rica praticada por pessoas que, mesmo que sem saber, criaram uma cultura. 

O artista deixa uma mensagem para os crias: “crianças, ‘pequenos Luthulys”, jovens e adultos, se você tem um sonho, ele é só seu. No sentido de que apenas você vai conseguir caminhar e fazer com ele se realize. Não podemos depender das pessoas para realizar o que a gente quer! Às vezes, vamos precisar das pessoas, mas não podemos depender delas. Use o que você tiver pra fazer o seu rolê acontecer! Use o que [você] puder usar e o que estiver ao seu alcance. Mesmo com as adversidades, dê um jeito de fazer”.

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