Quando conversamos com Gildo Henrique da Silva, vendedor de brinquedos e presidente da Associação do Mercado Popular da Rocinha, sobre as ameaças de remoção que o espaço comercial vinha sofrendo nos últimos meses, o sentimento de nostalgia foi ganhando contornos. O vai e vem de pessoas pelo camelódromo da Rocinha parece interminável. 

E é assim desde o começo dos anos 2000, quando a calçada de cerca de 150 metros de extensão já era ocupada por ambulantes. De um lado tinha um ponto de ônibus e transporte alternativo; do outro, uma subestação de energia e a Igreja Universal do Reino de Deus. Cerca de 50 mil pessoas passavam todos os dias por ali. Esse número provavelmente cresceu com o aumento populacional na Rocinha.

Antes, tudo era desorganizado. Os tetos das barracas de ferro eram cobertas com lonas azuis que podiam ser observadas do alto do morro. Um dia chuvoso prejudicava os comerciantes porque a calçada não tinha boas condições, barro puro. Sem falar do calor e as dificuldades para ir ao banheiro, por exemplo.

O Mercado Popular da Rocinha saiu do papel a partir de uma lei municipal, de autoria da ex-vereadora Liliam Sá, aprovado em 2002. O espaço comercial faz parte do programa de construção de Mercados Populares, idealizado pela Prefeitura do Rio com o objetivo de criar espaços organizados e padronizados para o funcionamento adequado do comércio de ambulantes na cidade.

Fachada da obra do Mercado Popular da Rocinha, entregue dias depois das eleições municipais de 2004. Foto: Celso Brando

As obras na Rocinha começaram em setembro de 2003 com orçamento de R$ 1,8 milhão. Ao todo a área comercial de 1.500m² foi projetada com 165 boxes em módulos de estrutura metálica, além de um volume construído em alvenaria para comportar sanitários, administração e casa de máquinas. A água da chuva é captada pelos mastros de sustentação das lonas que recolhem e levam o que escorria pela rua até a rede de captação pública através da drenagem pelo subsolo.

O Mercado Popular da Rocinha foi inaugurado em novembro de 2004, poucos dias depois das eleições municipais. Em pouco tempo, o camelódromo, como ficou conhecido entre os moradores e lojistas, virou alvo de discórdias entre barraqueiros e poder público. Camelôs da Rocinha reclamaram que não conseguiram um espaço no empreendimento. Enquanto pessoas de outros bairros – até japoneses – teriam sido cadastradas e receberam a licença de trabalho.

Referência internacional

O projeto arquitetônico e urbanístico do Mercado Popular da Rocinha foi desenvolvido pelo arquiteto Rodrigo Azevedo. Ele se inspirou o Mercado Ver-o-Peso, em Belém (PA), onde participou de uma equipe liderada pelo arquiteto Flávio de Oliveira Ferreira, responsável pela arquitetura e restauração do espaço comercial. 

Planta do Mercado Popular da Rocinha cedida pelo arquiteto Rodrigo Azevedo; no lado direito, detalhes dos boxes.

Em 2005, o projeto do Mercado Popular da Rocinha foi reconhecido internacionalmente ao fazer parte de uma exposição de arquitetura em Paris, na França. O evento homenageou a diversidade e a modernidade da cultura brasileira.

Visto de cima, o Mercado Popular da Rocinha lembra um guarda-chuva ao contrário. A lona tensionada é o mesmo material que pode ser encontrado na cúpula do Rock in Rio e no Circo Voador, na Lapa. A escolha do material levou em consideração para que não houvesse novos puxadinhos. 

24h por dia, sete dias na semana

Os camelôs gostaram tanto do mercado popular que nunca mais baixaram as portas. Muitos deles mantém os boxes abertos 24h por dia. Há poucos metros dali, o shopping Fashion Mall, em São Conrado, possui 113 lojas. Quase 4 milhões de pessoas consomem no centro comercial por ano. Apesar da infraestrutura ser bem superior ao Mercado Popular da Rocinha, há quem diga que o “shopping da Rocinha” deixa a classe média alta no chinelo por conta da variedade de produtos e a agitação cultural.

Isso porque quase 37 milhões de pessoas passam pelo mercado popular anualmente, considerando a média de 50 mil pessoas por dia que passam pelo local. Além dos preços em conta que compete com outros locais da cidade, como a Uruguaiana, no Centro do Rio e o calçadão de Bangu, na zona oeste do Rio.

Pedestres caminham pelo interior do mercado popular, enquanto lojas surgem fechadas. Horários mudaram após crescimento da demanda por produtos eletrônicos e cosméticos. Foto: Celso Brandão/Acervo Rodrigo Azevedo

O fato de que os ambulantes que não conseguiram espaço no Mercado Popular da Rocinha pode ter prejudicado as tentativas de ordenamento urbano da Rocinha. Sem espaço, muitas barracas de camelôs em situação irregular voltaram a ocupar os arredores do camelódromo e é assim até hoje.

Embora a Rocinha tenha vivido um crescimento no comércio de rua irregular nos últimos anos, sempre haverá pessoas vendendo alguma coisa. Isso tende a aumentar com o impacto da pandemia da Covid-19 e o desemprego no país. Ao invés de remover, o poder público deve fomentar a economia local construindo mais espaços para que empreendedores possam conquistar sua renda, por exemplo, a construção do Mercado Popular do Largo do Boiadeiro.

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